domingo, 10 de outubro de 2010

Nozes, dentes, chicotes

Em Melinda e Melinda, de Woody Allen, há uma personagem, Lee, que está com a sua jovem amante e fala da mulher com desprezo. Diz que a mulher não faz mais do que almoçar e ir às compras, e quando a amante lhe pergunta se ela não faz mesmo mais nada, Lee responde que ela de vez em quando dá aulas de música numa escola (a mulher de Lee, interpretada por Chloe Sevingy, tinha grande talento para o piano). Lee termina a sua tirada desagradável sobre a mulher dizendo algo como it's funny, but life has a malicious way of dealing with great talent.
Deixando de parte o comentário óbvio, que é o facto de os filmes de Woody Allen, por mais repetitivos que sejam, tenham sempre, sempre, sempre algo que vale a pena, a verdade é que esta tirada de Lee é assustadoramente verdadeira. A História está repleta de exemplos de grandes génios, talentos imensos, para quem a vida foi muito mais difícil precisamente por causa do seu talento (olha o Mozart, olha o Camões, olha o Antero de Quental, olha o Edgar Allan Poe, olha o Van Gogh e etc.). Para toda esta gente, a vida devia ter sido mais fácil, o mundo devia imediatamente ter-se rendido ao talento extraordinário. Mas a vida foi, para eles e para outros com talento, muito mais complicada do que deveria ter sido. Tenho pensado, por exemplo, em Billie Holiday, sobre quem vi um documentário há pouco tempo. A Billie estava a cantar com uma banda de swing de músicos brancos e, num dos hóteis em que actuaram, foi-lhe exigido que usasse o elevador de serviço, dos empregados, para não incomodar os clientes. Em qualquer sítio em que cantasse, o mínimo que a Billie Holiday mereceria era um silêncio reverente de admiração. Mas não, em vez disso, elevador de serviço, para aprenderes que o teu talento não serve para nada e não é nada comparado com outros valores que, na altura, e infelizmente, se levantavam.
Parece que as coisas são sempre mais fáceis para os vaidosos, medíocres, talvez porque estes, como dizem os brasileiros numa expressão de que eu gosto bastante, "não se enxergam". Quem se enxerga e tem talento talvez tenha um poder de auto-crítica que será, eventualmente, quase destruidor.
Truman Capote escreveu um belíssimo texto sobre mais ou menos isto. Na introdução ao "Music for Chameleons", Truman diz que Deus, ao conceder-lhe talento para escrita, lhe tinha dado também um permanente chicote que o feria constantemente. O seu talento era também a sua tortura.
Mas pelo menos quem tem um chicote é obrigado a fazer algo com o seu talento. Há gente que tem talento, não tem chicote e depois não sabe o que fazer com o talento que tem, o que quase equivale a não ter talento nenhum. É a tal história das nozes a quem não tem dentes. Portanto, Deus, além das nozes e dos dentes, nunca se deveria esquecer de dar também um chicote bem estaladiço às pessoas, tal como deu ao Truman.

1 comentário:

Anónimo disse...

Acho que tens tudo: o talento e o chicote. Nós só temos de agradecer a Deus por isso!

Marta