A ideia de pecado original sempre me pareceu muito cruel. Uma injustiça. Quer dizer, uma pessoa está muito bem sem fazer nada e quando dá por ela, zás, já tem um pecado em cima. Assim, só por ter nascido. Hã?
Quando eu era pequena, diziam-me, a mim e aos outros todos da catequese, que quem não é baptizado carrega o pecado original como uma marca flamejante para sempre. Por acaso, esta da marca flamejante acrescentei eu, mas o resto é verdade. O que me angustiava é que, mesmo que a questão do baptismo estivesse resolvida e o pecado original expurgado e arrumado, a pessoa ainda tinha de se preocupar com os pecados todos que cometia diariamente, alguns deles que nem sabia se eram pecados ou não, e esses só passavam com a confissão e a absolvição e a comunhão; no entanto, a tal confissão e restantes métodos eram só para pessoas de uma certa idade, não eram para crianças. De modo que, de certa forma, eu invejava os adultos, porque esses tinham uma maneira de, regularmente, seguir procedimentos claros para, em tempo útil e sede própria, se livrarem do Mal, fazendo uma espécie de tábua rasa para começar de novo, ao passo que as crianças estavam bem arranjadas, pecado original (ou não) e ainda por cima mais os outros pecados todos. Também me angustiava não saber exactamente que pecados eram esses, não haver assim uma espécie de grelha que me dissesse, isto igual a pecado, aquilo igual a pecado mas pequenino, aqueloutro pecado enorme, e assim por diante.
Isto para dizer que bem cedo me apercebi da natureza pecaminosa do ser humano, e ainda hoje acho terrível que não nos seja concedida uma margem de dúvida, do estilo - olha, a partir do momento em que vens ao mundo, tens cadastro limpíssimo; a partir daí, começas a asneirar e começa a contagem decrescente; se chegar ao menos zero, vais para o inferno, mas pelo menos tens, logo à partida, uma oportunidade decente. Estando as coisas como estão, e já nascendo a pessoa em estado pecaminoso, que hipótese é que se tem?
Por acaso, lembrei-me disto há pouco tempo, quando estava a conduzir com o ipod aos berros, que calhou parar no It's a Sin, dos Pet Shop Boys. Era uma manhã horrível em Lisboa, cedíssimo, o trânsito que se movia lento como uma jibóia gorda que acabou de engolir um elefante do dobro do tamanho, e eu ali encafuada a olhar para as pessoas nos outros carros, sonolentas, feiosas, umas fumavam, outras, no lugar do pendura, abandonavam-se ao sono de tal forma que metiam pena, outras ainda olhavam em frente, tristonhas, e à minha volta e à volta delas prédios pingões, cinzentões, sujos. Seria claro para qualquer pessoa que ainda tivesse ilusões que, àquela hora, naquele sítio, se estava face à evidência de que a raça humana é tudo menos perfeita. E, sabendo nós isto, sabendo nós que somos tão feios, porcos e maus, que ninguém escapa, ainda temos de aguentar o pecado original? Não está correcto.