quarta-feira, 7 de julho de 2010

Cotovia voa voa


Comemoram-se os 50 anos de To Kill a Mockingbird (nota para dizer que a tradução do título em português, Não Matem a Cotovia, não faz justiça à grandeza do livro; o título português parece uma coisa Paulo Coelho - hippie - ecologista chato. Há que pensar noutras opções).
Harper Lee, que escreveu o livro, ainda vive, é uma reclusa e não fala com ninguém, apenas ocasionalmente permitindo que os seus amigos e familiares dêem entrevistas por ela. O seu grande amigo de infância, Truman Capote, gostou sempre de espalhafato até morrer, mas não escapou a um certo anti-climax à hora da morte. Talvez Lee queira evitar esse sentimento de perda e, antecipando-o, refugia-se do mundo, evitando que este a deite fora no fim, qual Greta Garbo.
Sempre me interroguei porque é que Harper Lee nunca voltou a escrever um romance, considerando que o único que produziu é tão bom. E talvez a razão se encontre aqui, na qualidade imensa do primeiro romance.
Talvez haja um limite, um racionamento, da inspiração. Talvez certas pessoas sejam brilhantes, mas apenas consigam usar o seu brilhantismo uma vez na vida. Escrevem aquilo e pronto. Harper Lee escreveu a cotovia. Orson Wells fez o Citizen Kane. Emily Bronte escreveu Wuthering Heights.
Outras pessoas há que conseguem racionar com mais equilíbrio o seu talento. Picasso não pintou só a Guernica; Saramago não escreveu só o Memorial; Truman Capote não escreveu só o In Cold Blood; Beethoven não compôs apenas a 9ª Sinfonia, e por aí fora.
Porém, o que parece certo é que há sempre um momento maior, uma chama mais intensa, que depois se apaga necessariamente. Há pessoas que escrevem melhor quando começam, e para o fim da vida já não se aturam. Há outras que estão apenas a praticar com os primeiros livros, e os últimos que publicam são verdadeiramente os monumentos. Seja qual for o caso, o momento de glória parece ser escasso, reduzido, único.
Não faço ideia porque é que Harper Lee não fala com ninguém, não publica romances, prefere que se esqueçam dela. Talvez saiba que nunca conseguirá escrever outra cotovia. Talvez prefira não escrever. Talvez tenha escrito mas não queira publicar. Talvez tenha medo do olhar crítico daqueles que esperam dela um outro rasgo de brilhantismo.
As pessoas brilhantes têm, de facto, um caminho duro a percorrer. Têm a responsabilidade de cumprir sempre com as exigências do seu brilhantismo, e o que fazer naqueles dias em que a cabeça só dá para pizza e cerveja? O mundo à espera, necessitado, de um monumento, do romance, filme, quadro fundamental, ou da revolução do século XXII, e a pessoa capaz de fazer tudo acontecer está ali, a beber cerveja e a comer pizza.
Talvez Harper Lee tenha decidido que a sua contribuição para o mundo estava feita, concretizada e acabada com um único romance. Humildemente, a minha opinião é que deveria ter continuado a publicar romances, mesmo que tudo o que escrevesse não passasse de algodão doce que enjoa e dá dores de estômago.
Mas talvez seja um peso demasiadamente grande, aquele que Harper Lee escolheu não carregar. E, considerando o livro que nos deixou, a gente perdoa.

3 comentários:

Anónimo disse...

Agrada-me o romantismo da ideia mas há um reparo a fazer, Orson Welles fez mais do que Citizen Kane, mantendo a bitola. E teve ainda a inspiração suficiente para também como actor se expressar grandiosamente.

Poetic Girl disse...

Adorei este teu post. Ainda não li o livro de Harper Lee, consta das minhas últimas aquisi~ções mas ainda não li. Provavelmente irei fazer a seguir... beijoca

Rita F. disse...

Xavier Liberto Beco, pois é. É verdade. Eu é que me lembro sempre do Citizen Kane, mas de facto este indivíduo foi sempre muito bom.

Poetic Girl, a ler, a ler. É livro de adoração, sem dúvida.