quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

A vida dos outros

Acho que, no fundo, no fundo, as pessoas querem sempre dizer-nos a vida toda delas. Já que não podem aparecer nas revistas, consolam-se com os incautos que vão apanhando e sobre quem poderão despejar todo um mundo de informação que não interessa para nada ao receptor, mas que contribui para que o emissor se sinta tremendamente importante.
Cheguei a esta conclusão ao observar as pessoas que falam ao telemóvel em viagens de autocarro ou comboio., coisa que eu adoro fazer, porque, subrepticiamente, sim, tenho um interesse desfasado na vida do cidadão comum. E há cidadãos que, para meu deleite, fazem questão de desfiar toda a sua vida, personalidade, gostos e embirrações aos gritos, para informar não só o desgraçado do outro lado da linha que tem de os ouvir, mas também toda a audiência composta pelas pessoas que se encontram no dito autocarro ou carruagem de comboio.
Exemplificando.
Uma vez, num comboio a transbordar, com o ar condicionado avariado, a rapariga ruiva, meio vesga, que se sentou à minha frente, pegou no telemóvel e não descolou de lá o ouvido até chegarmos ao destino. É importante dizer que o comboio era descendente, como muitos comboios são, e que não ia de Queluz à Cruz Quebrada, mas fazia antes o percurso de uma cidade do norte de Inglaterra até Londres. A viagem demorou horas, período de tempo que chegou e sobejou (adoro este verbo) para que eu me inteirasse do seguinte:
a rapariga vivia no norte e ia a Londres passar o fim-de-semana com um amigo, para ver se espairecia, porque o namorado, que se chamava Lee, a tinha deixado; este namorado tinha um irmão chamado Steve, que estava do lado da rapariga e não percebia porque é que o Lee tinha abandonado a rapariga, que era boa rapariga e não tinha nada de mal; aliás, ela e o Lee até já viviam juntos há três anos, e ela inclusivamente tinha deixado o namorado da altura, o Stanley, para ficar com o Lee. Ora, este Lee não era bom da cabeça, porque não só tinha, lá está, abandonado a rapariga, como tinha ido viver com a mãe desempregada que vivia em Blackpool; a rapariga não entendia o que é o que Lee tinha a fazer em Blackpool, que é sítio sem futuro nenhum, e porque é que tinha decidido ir viver com a mãe, que estava desempregada e não tinha dinheiro para o sustentar. O próprio Lee não tinha dinheiro, e ela, raparia ruiva vesga, é que o tinha sustentado aquele tempo todo, para agora estar para ali abandonada por dá cá aquela palha; por isso, ia para Londres descontrair, que aquela história toda estava a dar-lhe cabo da cabeça, mas o amigo que estava à espera dela em Londres era apenas um amigo e nada mais, já que ela estava farta de homens, era cada um pior que o outro, e de agora em diante só ia mas era prestar atenção a mulheres, que se calhar como lésbica tinha mais sorte.
Saí do comboio e a rapariga seguiu à minha frente. Não vi ninguém à espera dela. Afastei-me para o metro e ainda me virei para trás. Vi-a especada, a olhar não sei para onde, sozinha. Coitadita.
Noutro dia, no autocarro, ia uma senhora igualmente entretida a falar ao telemóvel. Estava a falar com uma amiga. Esta amiga tinha um filho. Este filho tinha uma namorada. O mesmo filho também tinha um carro, mas não tinha casa, nem estudos, nem desejo de ter estudos, nem emprego a sério, e ainda vivia com os pais. Isto porque não tinha estímulo para sair de casa, porque a namorada não queria casar com ele. A senhora do telemóvel aconselhou a amiga do outro lado da linha que dissesse ao filho para acabar com a namorada, porque esta última era uma abusadora, que queria andar de carro até arranjar outro rapaz melhor de quem ela gostasse, altura em que terminaria todo o namoro como o filho da senhora do outro lado da linha. O filho que poupasse tristeza e gasolina e acabasse já com a tal rapariga.
Ontem, ao almoço, as duas raparigas que se sentaram ao pé de mim a bebericar uma sopa e um café estavam a discutir a problemática do amante de uma delas. Este amante tinha uma companheira com quem vivia, mas sabia que ela era "má-rês", de modo que não confiava nela, isto é, não punha a casa em nome dela nem tinha filhos dela, mas tinha uma filha, isso sim, de uma outra; esta outra também não era boa pessoa, e a filha parece que era como a mãe, de modo que o amante da rapariga que estava a almoçar ao meu lado, desgraçado como era, tinha sido forçado a aventurar-se no mundo do affair extra-conjugal, namorando clandestinamente com a rapariga que se sentava ao meu lado. Segundo esta, o amante gostava dela e queria ficar com ela, porque nela sim, ele podia enfim confiar, mas a questão é que a companheira era uma bruxa e não o deixava em paz, e ele não sabia bem como descalçar a bota. A amiga da rapariga, que também estava a almoçar ao meu lado, disse que aquilo era tudo "doentio". Apeteceu-me pôr ali um "like", como no facebook.
A vida dos outros cansa muito. E é assim, levamos com ela todos os dias, despudoradamente. Se a rapariga do comboio, a senhora do autocarro, e a rapariga do almoço, algum dia gozarem de 15 minutos (ou até mesmo só 5, que chegam bem) de fama, aposto que até fotocopiam o BI para que o mundo o estude atentamente.
Feitios.

2 comentários:

fado alexandrino. disse...

Cheguei aqui (ao blog) vindo dali .

É uma escrita de alta qualidade que sabe muito bem transmitir as emoções banais de uma forma que na aparência de simples é elaborada.
Não vou alongar-me muito em comentários porque do ainda pouco lido verifico que vivemos em dois universos paralelos, desde logo porque um é homem e outro é mulher.

E foi essa curiosidade que me leva a comentar este post tão descritivo.
Daqui vê-se (melhor ouve-se) que quem fala alto aos telemóveis nos transportes são mulheres e todas com complicações amorosas.
É um mundo perigoso e inconstante, pensarão.

Viajo muito na linha de Sintra (a propósito para se ir de Queluz à Cruz Quebrada são necessários três comboios e um é subterrâneo) e regularmente também viaja um senhor cego (agora são invisuais) sempre acompanhado de um cão guia.
Viaja nas horas de ponta e portanto deve trabalhar.

Vejo-o várias vezes e está sempre a falar ao telemóvel e este sempre é mesmo isso, antes de entrar no comboio, dentro do mesmo, depois de sair e sempre a caminho de casa até que o perco de vista.

O que falará (fala tão baixinho que não se ouve nada) com quem falará o que falará.
Cada vida um universo.

Voltarei aqui todos os dias para me deliciar com a escrita.

Rita F. disse...

Agora estou com toda a curiosidade para saber de que fala esse senhor. Com as mulheres é mais fácil, porque de facto têm a tendência para falar mais alto. É a evolução.
E sim, tendo a apanhar conversas sobre complicações amorosas, mas também são essas que mais facilmente memorizo. Tenho uma faceta telenovelística muito, muito apurada (muita Barbie, muito Ken quando era pequena). Mas que a vida banal está recheada da ficção mais sumarenta, disso não tenho grandes dúvidas.
Se entretanto houver novidades sobre a tal conversa do senhor invisual ao telemóvel, fico à espera. :)