sábado, 19 de fevereiro de 2011

Uma aventura na Segurança Social

Noutro dia, tive de me dirigir à chamada "Segurança Social". Cheguei lá e disse-me a Segurança Social, "olhe, agora sente-se ali numa cadeira e espere. Ainda tem 90 pessoas à frente" - eu fiquei chocada durante uma hora, em estado catatónico, quase sem me conseguir mexer ou falar. Quando voltei a mim, ainda só tinham passado três senhas. Estavam 87 pessoas à frente.
Ao pé de mim estavam dois ucranianos. Não percebi o que eles diziam. Na fila à frente, estava um senhor brasileiro com a filha ao colo a gritar pela avó. A Segurança Social  (doravante SS) disse-lhe para estar calada, porque o barulho daquela sala encafuada e saturada de calor desconfortavelmente humano começava a ser muito. A criança começou a chorar, mas desta vez baixinho.
Entretanto, entrou um senhor novo e tirou senha. Perguntou quanto tempo demoraria a ser atendido. A SS disse-lhe que não fazia ideia nenhuma. O senhor novo começou a falar com uma outra senhora que ele conhecia e que já lá estava há 4 horas. Ela disse-lhe que estava ali porque recebia 370 euros por mês e que ia perder um subsídio qualquer que também recebia da SS - esta última virou-se para a mulher e sorriu-lhe malevolamente.
Depois, assim sem mais nem menos, a SS começou a chamar pessoas para dentro de uma sala. Iam aos grupos de dez. As pessoas entravam para as salas e ninguém as via sair. De meia em meia hora, a Segurança Social chamava novos grupos de dez pessoas para salas recônditas. Abria porta apenas o suficiente para as pessoas entrarem e não se conseguia ver nada lá para dentro, apenas escuridão. Ninguém pedia livro de reclamações, toda a gente se limitava a entrar, e quase todos pareciam aliviados por estar a acontecer qualquer coisa, como se aquilo lhes justificasse a longa espera. 
Quando chegou a minha vez, fiquei com muito medo, mas afinal aquilo não era nada de especial,: entrava-se na sala, estava tão escuro que nem víamos por onde íamos, e de vez em quando sentia-se alguém escorregar por um vácuo fundo e húmido. Quando os meus olhos se habituaram à negritude, vi um grande poço no chão, uma enorme boca fumegante, que era por onde as pessoas que não tinham tacteado juntinho à parede haviam escorregado. Olhando para o tecto, vi um ameaçador pêndulo cortante, que balouçava de um lado ao outro da estreita sala e que ia descendo lentamente. Houve pessoas que se atiraram logo poço abaixo, porque se calhar se enervaram, mas isso foi estúpido, porque saíram dali sem informação nem subsídio, e para isso mais valia nem terem ido à SS. Alguns, antes de se atirarem, ainda perguntavam aos outros se queriam ficar com a senha deles, para o caso de terem um número mais adiantado. À conta disso, fiquei com uma senha dez números à frente da minha o que, contando com os que tinham desistido e atirado poço abaixo, já me oferecia uma vantagenzita simpática.
Irrita-me um tanto ou quanto ficar à espera, mas não havia nada a fazer, porque já se sabe que, quando se vai às repartições públicas, é mesmo assim. O único problema que via ali era o pêndulo, que continuava a descer, e tinha muito ar de aleijar. As outras pessoas também começavam a recear o mesmo, e eu dei por mim a desejar que considerassem a opção do poço, porque era menos gente à frente e eu estava mesmo a precisar de me despachar para ir almoçar. Mas aquilo não atava nem desatava, e a SS não estava a chamar nenhuma senha nova.
E foi aí que eu me lembrei de uma coisa brilhante. Comecei aos gritos, "olhe, se faz favor, eu quero mas é o livro de reclamações!". A SS entrou na sala, muito séria. Trazia um livro amarelo debaixo do braço. Tentou sorrir, amareladamente. Perguntou-me, "mas quer o livro de reclamações só por causa disto?", e eu respondi que sim. A SS deu-me tudo o que eu quis e deixou-me sair da sala. Fui atendida à frente dos outros todos, que ficaram ali a olhar para o pêndulo, mas a culpa não foi minha.
É que as pessoas deste país não reclamam e depois é isto.

5 comentários:

josépacheco disse...

por muito que pareça um sonho, quer dizer, um pesadelo, se me disser que foi exactamente o que lhe aconteceu, estou pronto parea acreditar. em portugal, seria perfeitamente possível: com pêndulo e tudo. sou fã do seu humor negro.

fado alexandrino. disse...

Fez-me voltar à juventude.
O Pit and the Pendulum foi um dos filmes que nunca esqueci e arrepelei-me todo ao ver a fria lâmina avançar para o quente corpo da heroína.

E ainda há outro (não me recorda agora o nome)em que ele tinha um pavor enorme de ser enterrado vivo e preparou tudo para evitar que isso acontecesse.

Mas aconteceu.
É o mesmo com a SS bem a tentamos evitar mas ela acaba sempre por se cruzar connosco nos piores momentos.

Inês disse...

Que pesadelo, que tristeza como tudo isto (não) funciona.
SS está absolutamente delicioso :)
Bjs p a Caetana

Rita F. disse...

José, tirando a parte do poço e do pêndulo, o caso deu-se de forma assustadoramente próxima àquilo que descrevi. Mas as pessoas que estavam a atender, coitadas, também estavam tão cansadas. Foi tudo lúgubre e triste.

Fado, também me lembro desse outro conto em que ele é narcoléptico, acho eu, e acorda metido num túmulo! Num mausoléu, penso. Já nem me lembro como é que ele se safou. Andava sempre com um papelinho dentro do bolso e tudo, para avisar as pessoas... fenomenal, o Edgar Allan. E concordo com a analogia.

Querida i. ... sabes, o que ainda me reconfortou e assustou ao mesmo tempo foi o facto de o serviço em si, de as pessoas que estavam a atender, estarem com muito boa vontade. E pensar que um serviço do Estado só não descamba de todo porque depende da "boa vontade" dos trabalhadores, que a podem perder amamhã porque não recebem mais por isso, assusta um bocadinho. Não devia ser assim. Beijinho, beijinho, beijinho.

fado alexandrino. disse...

Encontrei, está aqui

http://en.wikipedia.org/wiki/The_Premature_Burial

e

http://www.imdb.com/title/tt0056368/

Grande filme