quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Ensaio sobre a cegueira

Não vai ser ensaio nenhum, o título é só para chamar a atenção. Houve uma senhora que morreu e deixou um cadáver, e esse cadáver ficou 9 anos fechado num apartamento. Houve também um familiar que tentou 13 vezes que o Tribunal desse ordem para arrombar a porta mas parece que não deu. Também se contactaram uns sobrinhos e a polícia, mas mais uma vez não deve ter dado. A senhora que deixou cadáver tinha uns animais que morreram na varanda, com certeza de fome. Isto digo eu. Se calhar, também adoeceram. 
A situação descobriu-se porque as Finanças começaram a considerar no mínimo estranho que existisse sujeito passivo tão inerte, tão mau pagador, ou havia uma penhora qualquer, ou uma coisa assim burocrática parecida. A senhora que deixou cadáver foi identificada, a sua existência, ou falta dela, foi notada porque havia um número, num qualquer sistema estatal hierárquico e burocrático, que tinha o registo dela. Quer dizer, mais ninguém tinha - mas na hierarquia de poderes bem definidinha que o Estado impõe, havia um número (provavelmente de contribuinte), e esse número apontava para o cadáver. Como diz Foucault na sua Vida dos Homens Infames (S., o livro é teu, tenho de te devolver!) - todas aquelas vidas, que estavam destinadas a passar ao lado de todo o discurso e a desaparecer sem nunca terem sido ditas, não puderam deixar traços senão em virtude do seu contacto momentâneo com o poder.
Pois é. Quem não tem número de contribuinte e pensa que tem identidade, desengane-se. A nossa existência, como diz Foucault apenas dos "homens infames", mas como pode ser alargado a quem quer que viva sob a alçada do Estado, Providência ou mínimo, dizia, a nossa existência e identidade dependem de uma coisinha apenas, o tal "confronto com o poder", o momento em que o Estado nos regista e reconhece.
A não ser que sejamos o Corto Maltese. Obviamente, o Corto Maltese não precisa de número de contribuinte. Podia é ter número de telefone, que isso é que me dava jeito. É mesmo assim, sem registo e sem números a nossa vida não vai a lado nenhum. 
Que converseta tão deprimente.

1 comentário:

fado alexandrino disse...

Todo este assunto, felizmente explorado pelos melhores blogs de Portugal (nos quais os dois estamos)é uma autêntica nojeira e um trapo encharcado na tromba de muita gente.