domingo, 23 de janeiro de 2011

Queijo

De toda a parafernália de documentos que um cidadão deste país tem de ter e obter, o meu preferido é sem dúvida o "cartão de eleitor" - verdadeiramente, o mais pobrezinho e o mais honrado de todos os documentos infindos de que precisamos para ter qualquer espécie de identidade neste país. A avaliar pelas filas de pessoas ao frio e à seca para saberem o número de eleitor antes de votarem, já que o cartãozinho de cidadão é todo xpto mas número de eleitor é que não tem, o que se verifica é que o cartão de eleitor da velha guarda, em cartão fraquinho, com um modesto carimbo com a freguesia e a parecer um qualquer folheto de restaurante de frango assado com promoções (cinco carimbos e leva um frango grátis), esse mesmo modesto cartão, vale mais do que todos os pós modernos que se possam inventar e que, como o dia de hoje perfeitamente ilustrou, não funcionam. 
Primeiro, o cartão de eleitor é simpático porque não tem fotografia. Agora já não se tem de ir ao fotógrafo antes de ir obter documentação necessária, mas mesmo assim é muito incomodativo ter de olhar para aquela câmara minúscula que eles têm para o cartão de cidadão ou passaporte, e a foto ficar toda mal, uma pessoa com ar de Dr Spock rechonchudo mas igualmente preocupado (aconteceu-me isto quando fui tirar o passaporte, porque a senhora insistiu para que eu pusesse o cabelo por trás das orelhas - "as orelhas têm de se ver!", disse-me ela - e isto apesar de eu na altura ter o cabelo curto, mas enfim), dizia, tirar fotografias em contexto instituicional é uma seca, a pessoa fica sempre tão feia que é um desgosto e dá vontade de chorar, e eu não estou para aturar que o Estado me trate mal desta maneira, se pago impostos não é para me chamarem feia, de modo que uma vantagem óbvia do cartão de eleitor é, logo à partida, não ter fotografia em lado nenhum.
Em segundo lugar, o cabeçalho do cartão de eleitor é uma coisa bonita. Diz assim: "República Portuguesa", e eu gosto que me lembrem de que eu não vivo apenas em Portugal, vivo na "República Portuguesa". Como normalmente passo a vida a carpir aquele sentimento, já muito batido que enjoa, do "ai que não pertenço a lugar nenhum", quando olho para o cartão de eleitor sei que, pelo menos, pertenço ao grupo de pessoas que é eleitor da república portuguesa. Podia ser bem pior.
Em terceiro lugar, o cartão de eleitor é um meio rápido, simples e prático de se saber uma coisa tão elementar como o nosso número de eleitor - em vez das sms ou internets, há um  outro método super-simples, que é: olhar para o número que está no cartão. Assim, vota-se em dez minutos. Rápido e barato, embora não dê milhões. O que dá exactamente ainda não se sabe.
O único problema que eu vejo com o voto, possibilitado pelo cartão de eleitor, é o sentimento que se tem a seguir - fiz bem ou fiz mal? Devo dizer que o acto de votar em si é coisa que me apraz, talvez porque desde pequena todos os adultos à minha volta tiveram a preocupação de deixar bem claro que um cidadão tem de votar. Lembro-me de que a minha professora da primária, por exemplo, trouxe uma vez um boletim de voto (em branco, bem entendido) para a aula, depois de umas eleições, para nós vermos como era. Toda a gente começou aos berros a gritar em quem gostariam de votar, revelando deste modo, muito claramente, as opções políticas dos paizinhos que tinham doutrinado os filhos em casa, mas era assim mesmo, naquela altura até as crianças da primária percebiam a importância de algo tão elementar como o voto.
Mas, dizia eu, o problema com o voto é aquilo que se sente depois. Eu, por exemplo, sinto-me um rato daqueles da gaiola, tipo hamster, mas um hamster suis generis que não gosta de queijo (é verdade, não posso com queijo). Estou ali na gaiola, a olhar, sem alternativa nenhuma, e vão-me dando vários queijos para comer, mas a verdade é que é sempre queijo, e a mim não me interessa que tipo de queijo é que é, já que qualquer tipo de queijo, por ser queijo, me enjoa só de cheirar. E depois dizem-me "ah, tu não comes porque não queres, que a gente alimenta-te", e eu digo "alimentam-me, mas é sempre a mesma coisa, e eu disso não  consigo comer", "então fica para aí e não comas", dizem-me, "então não como", digo eu. E fico assim neste estado - alternativa há, o problema é que é sempre queijo. Tenho de ficar à espera do presunto, por exemplo, que pode nunca aparecer.
E qual é a solução para este problema do queijo? Alguns decidem que é não ir votar, o que eu não compreendia no passado, mas agora até compreendo, dado o estado do queijo que nos oferecem. No entanto, para mim, e digo isto como pessoa que nunca toca num pedaço de queijo, nem o fresco que não sabe a nada me convence, dizia, quanto a mim, não ir votar não é solução. Ah, mas votar em branco também não, respondem-me, porque o branco conta como os nulos. É verdade, e aqui está uma grave falha do sistema eleitoral português que devia ser corrigida mas que, suspeito, nunca será - o voto em branco devia ser alvo de uma contagem a par dos outros votos válidos, tal como em alguns países (não sei quais são, mas sei que existem).
Não tenho solução para o queijo. Não sou o tipo de pessoa que comece a fazer campanha ao presunto, não sou o chamado estilo "dinâmico". Vou votar, pronto. Tenho o cartão de eleitor. 
Aquela história do D. Sebastião que regressa na manhã de nevoeiro começa a parecer-me menos parva. Começo a gostar. De vez em quando, penso nisso.

2 comentários:

fado alexandrino. disse...

Já faz longo tempo que conheci o menino Nicolau. Foi Goscinny quem escreveu, mas o verdadeiro pai foi o Sr. Sempé.

Esta frase está noutro blog e este texto brilhantemente escrito fez-me imediatamente lembrar as coisas interessantíssimas que o Nicolau nos contava sobre a sua preenchida vida.
Quando estou aborrecido basta abrir o livrinho ler uma delas e o optimismo acende-se como uma velinha, agora passo a ter mais um fósforo para a acender.
Obrigado.

Nota Os votos brancos são distinguidos (houve 191,159) dos nulos (que tiveram 86,543). Gosto mais destes, imagino o que as pessoas escrevem lá de elogios aos políticos.

S. G. disse...

desta vez até havia algum presunto (bom ou fraco não sei) para comer algo diferente...

quanto aos votos em branco, só nas presidenciais é que não contam como votos expressos. nas outras contam.