segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Amuse bouche (disclaimer: apesar do título à francesa, este post não é sofisticado)

Bem, há tanta coisa de que eu gosto, ou aprecio muitíssimo, na língua portuguesa que às vezes até fico desorientada.
Dizer "desgracei-me", por exemplo, em vez de dizer "o dia correu-me mal".
Dizer "estou desgovernada" ao invés de "desnorteada". Embora "desnorteada" também tenha a sua graça.
No entanto, há duas coisas que, ultimamente, e puramente a nível pessoal, têm estado no topo "no que concerne" (expressão espectacular) ao potencial expressivo-cómico do português: o sufixo -ex e a expressão "mal qual é o mal?".
Dois breves exemplos para ilustrar cada uma destes encantadores recursos linguísticos:
"P'ra frentex". Uma pessoa ser pra frentex é, de facto, enfim, ser muito à frente. Mas a beleza do -ex (ex sufixo, que se for prefixo o caso muda mesmo de figura e deixa de ter tanta piada - arre, que o português consegue ser tramado com estas bizantinices todas. Olha, outra: bizantinice. Mas continuando, senão nunca mais saio daqui), dizia, a beleza do -ex é que pode ser aplicada a situações de vário tipo e de vária ordem. Ainda noutro dia perguntei ao meu pai, "então mas isso foi dito assim à vontade?", ao que o meu pai respondeu "assim, à vontadex, à frente de toda a gente!". Ri-me imenso com isto. É a beleza da nossa língua - quanto menos se espera, o português tem sempre qualquer pormenorzinho reservado para nos fazer rir. É uma espécie daquilo a que agora os restaurantes chamam "amuse bouche".
Quanto ao "qual é o mal" - há um filme de Woody Allen, "Deconstructing Harry", do qual gosto muito. O fime é sobre Harry, um escritor, e é entrecortado por histórias que ele escreveu. Numa dessas histórias, há uma senhora já idosa que, numa festa, e por via de uma amiga que ouviu de outra amiga que conhece não sei quem, descobre que o seu marido, com quem vive há décadas, teve outro casamento antes de se casar com ela, matou a primeira mulher e os filhos e comeu-os para não deixar provas. A senhora vai para casa muito agastada, irrita-se com o marido, serve-lhe o jantar com maus modos e quando o marido lhe pergunta o que se passa, ela grita-lhe que ele foi casado antes e que matou a mulher e  os filhos e ainda os devorou e tudo. E chateia-o e chateia-o até que ele, que tem uma dor de cabeça e quer é jantar em paz, se vira para ela e exclama: "comi-os, pois foi! E qual é o mal?"
Não me lembro bem, mas acho que a senhora não tem resposta para isso. A beleza desta expressão é que não admite grande resposta. Uma pessoa encolhe os ombros e pergunta "qual é o mal?", genuinamente à espera que lhe expliquem, mas quem a acusa não lhe consegue bem explicar, porque está à espera que o tal "mal" seja óbvio e que a outra pessoa já perceba de antemão.
E pronto. Eu própria também não consigo explicar mais do que isto, e portanto vou parar, que sinto que o post está a descambar. Não ficou muito bem - mas qual é o mal?

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Cabelos

De vez em quando, escrevo e penso sobre cabelos. É uma idiossincrasia um bocado inútil, mas enfim. As inutilidades também fazem parte da vida.
A minha amiga L., por exemplo, que de vez em quando também pensa sobre cabelos, tem muito a mania de se indagar sobre o que leva uma pessoa a manter um corte de cabelo nos moldes em que, por exemplo, o Luís Represas o faz. É que aquilo nunca, nunca, nunca muda. Por consequência, eu própria também me indago sobre esta problemática, porque é de uma verdadeira problemática que se trata - um cabelo que há anos e anos é sempre do mesmo comprimento, sempre com as mesmas pontas espetadas na nuca, sempre com a mesma franja, mais ou menos penteada. Ainda há uns dias levantei esta questão no facebook - será que, no seu esforço de manutenção da modesta gaforina, Luís Represas se dirige ao cabeleireiro ou ao barbeiro?, mas ninguém me soube responder, talvez porque esta questão encerra uma filosofia retorcida muito difícil de destrinçar. Houve quem aventurasse que era quiçá peruca, o que eu espero que não seja, porque senão desfaz-se a magia.
Mas bom. Continuando, esta problemática do cabelo do Luís Represas é muito mais rica do que à partida se possa pensar, e explico porquê - há pessoas que nunca mudam o cabelo de forma alguma, nem à chamada "lei da bala", como aqui o Luís; há outras que estão sempre a mudar corte, cor, caracóis e quejandos. E isto diz muito da nossa personalidade. Por exemplo, uma pessoa que desde a adolescência possua o mesmo cabelo, o que diz isto dela? Diz que é pouco aventureira,não gosta de arriscar. Uma pessoa que desde a adolescência cortou, deixou crescer, fez madeixas, pintou, frisou, "desfrisou", o que diz isto dela? Diz que é uma maria-vai-com-as-outras que quer ser igual às Christinas Aguileras do seu tempo. E que dizer de uma pessoa que apenas moderadamente modificou o seu cabelo? Diz que é uma pessoa íntegra, por exemplo. É como um homem que sempre se agarrou orgulhosamente ao seu bigode, ao invés do Torres Couto ou Mega Ferreira que, não conseguindo manter a coerência, decidiram cortá-lo (e até aposto que morrem de vergonhaça sempre que têm de se confrontar com fotos dos anos 80 ou isso, com a bigodaça tuga que hoje em dia é muito, vamos lá, "demodé", "passé", "feia"). 
É que o cabelo, tal como o bigode ou barba nos homens, encerra esta tal questão da coerência, mas também da capacidade de adaptação - ninguém quer um cabelo que não se adapta ao ar dos tempos, como o cabelo do Luís Represas; mas também ninguém quer pilosidades ou cabelos que mudam por dá cá aquela palha, como se a pessoa fosse uma oferecida que não pensa por si.
De modo que com pilosidades e penteados, assim como com personalidades, todo o cuidado é pouco. Sempre muita cautela.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Publicidade


Porque "você" merece (e com um bocadinho de sorte, eu também).

PS: Prestar atenção ao facto de eu escrever "você", mas só entre aspas.
Eh pá, fui agora ali ao site do Cinecartaz consultar uma coisa, e aquilo está que é uma beleza. Impecável, parece o site de trailers da Apple, todo bem organizado, com tops e tal. Agora dá gosto, porque dantes era um site feio.
Sim senhora.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Nesquick

Já escrevi em tempos sobre Ovomaltine. É a minha bebida achocolatada preferida de sempre, a seguir ao Milo, mas como já não há Milo, é Ovomaltine.
Lamentavelmente, deixei de adquirir e consumir Ovomaltine porque, em minha casa, aquilo desaparecia a uma tal velocidade que me assustava. Era como se eu estivesse possuída por um instinto malévolo e incontrolável que me punha a beber leite com colheradas e colheradas de Ovomaltine até rapar copo e tudo.
De modo que mudei para o Nesquick. Sabe bem, mas não tão bem como Ovomaltine, e portanto consigo moderar mais. Assim, a pergunta que aqui me traz esta noite é: serei a única pessoa em idade balzaquiana, provecta, idosa ou de meia-idade, como queiram chamar, que consegue passar sem café de manhã, mas não consegue passar sem leite com Nesquick, docinho e a saber a chocolate? O café, para mim, é só a seguir, e pequeno-almoço que não inclua leite achocolatado não tem graça nenhuma.
Isto faz-me lembrar aquelas coisas que eu pensava que se iam transformar radicalmente na idade adulta, mas não transformaram - gosto muito de café, mas não o prefiro magicamente ao Nesquick; bebo vinho, mas não o prefiro imperativamente à Coca-Cola (sacrilégio, eu sei); consigo dormir no escuro, mas se houver uma luzinha de presença, durmo mais descansada. As coisas não mudam assim sem mais nem menos só porque se passou a ter uma certa idade.
Se houver outros como eu, identifiquem-se. Gostava de experimentar o chamado "sense of belonging", agora não estou para tentar traduzir e deixo assim, piroso.
Pronto.

O Dexter

O Dexter é uma série interessante. Gosto. E tem aquele actor espectacular, o Michael C. Hall; quem o viu nos Sete Palmos de Terra nem acredita, o homem é mesmo profissional.
Dexter conta com o aspecto engraçado de a personagem principal ser um assassino em série, mas com a particularidade de ter sido educado para dirigir o mal a quem o merece, por assim dizer. Também trabalha para a polícia, o que é outro aspecto original, além de desencadear o efeito Tony Soprano, que é a pessoa saber que a personagem principal faz parte do grupo dos "maus", mas não deixar de simpatizar com ela, gostar dela e querer que ela ganhe, deste modo reflectindo sobre a relatividade da vida, os valores do Bem e do Mal, e que nem sempre as coisas são o que parecem e assim e assado. No fundo, ver séries de televisão dá-nos muita filosofia.
Também há uma outra perspectiva sobre Dexter que discuti noutro dia com um amigo, que não gosta da série e já a deixou de ver. Disse-me ele que a acha reaccionária, demasiadamente impregnada de uma certa ideologia de direita americana com a qual ele não pode. Achei isto muito estranho - como, se o principal é um assassino, criminoso, completamente fora dos padrões da chamada decência? E diz-me o meu amigo que o problema da série é aquela ideia de que não faz mal matar alguém, e talvez possa ser até desejável, desde que essa pessoa o mereça. Quando apoiamos o Dexter e as suas decisões, apesar de ele andar por aí a matar outros assassinos, ou talvez por causa disso, apoiamos igualmente este poder individual, fora dos tribunais e da lei, sobre a vida e a morte. É uma outra forma de se concordar com a pena de morte, é como dizer "ah, eu não acho que deva existir pena de morte, mas acho que há gente que merece morrer e portanto não vejo problema nenhum se houver um Dexter por aí a matar escumalha".
Pois é. Não deixa de ser verdade. No entanto, é também verdade que a série não mostra a personagem principal como inocente, inteiramente justa e íntegra. Mostra um assassino que calha matar outros assassinos, mas que sabe que não é muito diferente deles - e também não é muito diferente de qualquer outra pessoa dita normal (foi casado, agora é viúvo, tem um bebé, um emprego estável, etc), residindo aqui o busílis da questão. Afinal, este Dexter é criminoso, é bonzinho, ou é os dois?
Conclusãozinha? Não há, para variar. Parece-me ser certo que concordar que há quem mereça morrer é a mesma coisa do que apoiar qualquer pena de morte, imposta ou não pelo Estado. Sempre fui contra a pena de morte e é das poucas coisas sobre as quais não quero mudar de ideias. Também não me parece que o Bem e o Mal sejam assim tão relativos como querem fazer crer - há coisas que estão bem e outras que estão mal. E porém - há muitas partes da vida mal iluminadas. Delas, não sabemos o que esperar porque, como já advertia Camões, esse deus terreno, "muda-se o ser, muda-se a confiança. Todo o Mundo é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades".
E essas qualidades podem ser boas ou más, sabemos lá nós. É ir andando.

domingo, 23 de janeiro de 2011

Queijo

De toda a parafernália de documentos que um cidadão deste país tem de ter e obter, o meu preferido é sem dúvida o "cartão de eleitor" - verdadeiramente, o mais pobrezinho e o mais honrado de todos os documentos infindos de que precisamos para ter qualquer espécie de identidade neste país. A avaliar pelas filas de pessoas ao frio e à seca para saberem o número de eleitor antes de votarem, já que o cartãozinho de cidadão é todo xpto mas número de eleitor é que não tem, o que se verifica é que o cartão de eleitor da velha guarda, em cartão fraquinho, com um modesto carimbo com a freguesia e a parecer um qualquer folheto de restaurante de frango assado com promoções (cinco carimbos e leva um frango grátis), esse mesmo modesto cartão, vale mais do que todos os pós modernos que se possam inventar e que, como o dia de hoje perfeitamente ilustrou, não funcionam. 
Primeiro, o cartão de eleitor é simpático porque não tem fotografia. Agora já não se tem de ir ao fotógrafo antes de ir obter documentação necessária, mas mesmo assim é muito incomodativo ter de olhar para aquela câmara minúscula que eles têm para o cartão de cidadão ou passaporte, e a foto ficar toda mal, uma pessoa com ar de Dr Spock rechonchudo mas igualmente preocupado (aconteceu-me isto quando fui tirar o passaporte, porque a senhora insistiu para que eu pusesse o cabelo por trás das orelhas - "as orelhas têm de se ver!", disse-me ela - e isto apesar de eu na altura ter o cabelo curto, mas enfim), dizia, tirar fotografias em contexto instituicional é uma seca, a pessoa fica sempre tão feia que é um desgosto e dá vontade de chorar, e eu não estou para aturar que o Estado me trate mal desta maneira, se pago impostos não é para me chamarem feia, de modo que uma vantagem óbvia do cartão de eleitor é, logo à partida, não ter fotografia em lado nenhum.
Em segundo lugar, o cabeçalho do cartão de eleitor é uma coisa bonita. Diz assim: "República Portuguesa", e eu gosto que me lembrem de que eu não vivo apenas em Portugal, vivo na "República Portuguesa". Como normalmente passo a vida a carpir aquele sentimento, já muito batido que enjoa, do "ai que não pertenço a lugar nenhum", quando olho para o cartão de eleitor sei que, pelo menos, pertenço ao grupo de pessoas que é eleitor da república portuguesa. Podia ser bem pior.
Em terceiro lugar, o cartão de eleitor é um meio rápido, simples e prático de se saber uma coisa tão elementar como o nosso número de eleitor - em vez das sms ou internets, há um  outro método super-simples, que é: olhar para o número que está no cartão. Assim, vota-se em dez minutos. Rápido e barato, embora não dê milhões. O que dá exactamente ainda não se sabe.
O único problema que eu vejo com o voto, possibilitado pelo cartão de eleitor, é o sentimento que se tem a seguir - fiz bem ou fiz mal? Devo dizer que o acto de votar em si é coisa que me apraz, talvez porque desde pequena todos os adultos à minha volta tiveram a preocupação de deixar bem claro que um cidadão tem de votar. Lembro-me de que a minha professora da primária, por exemplo, trouxe uma vez um boletim de voto (em branco, bem entendido) para a aula, depois de umas eleições, para nós vermos como era. Toda a gente começou aos berros a gritar em quem gostariam de votar, revelando deste modo, muito claramente, as opções políticas dos paizinhos que tinham doutrinado os filhos em casa, mas era assim mesmo, naquela altura até as crianças da primária percebiam a importância de algo tão elementar como o voto.
Mas, dizia eu, o problema com o voto é aquilo que se sente depois. Eu, por exemplo, sinto-me um rato daqueles da gaiola, tipo hamster, mas um hamster suis generis que não gosta de queijo (é verdade, não posso com queijo). Estou ali na gaiola, a olhar, sem alternativa nenhuma, e vão-me dando vários queijos para comer, mas a verdade é que é sempre queijo, e a mim não me interessa que tipo de queijo é que é, já que qualquer tipo de queijo, por ser queijo, me enjoa só de cheirar. E depois dizem-me "ah, tu não comes porque não queres, que a gente alimenta-te", e eu digo "alimentam-me, mas é sempre a mesma coisa, e eu disso não  consigo comer", "então fica para aí e não comas", dizem-me, "então não como", digo eu. E fico assim neste estado - alternativa há, o problema é que é sempre queijo. Tenho de ficar à espera do presunto, por exemplo, que pode nunca aparecer.
E qual é a solução para este problema do queijo? Alguns decidem que é não ir votar, o que eu não compreendia no passado, mas agora até compreendo, dado o estado do queijo que nos oferecem. No entanto, para mim, e digo isto como pessoa que nunca toca num pedaço de queijo, nem o fresco que não sabe a nada me convence, dizia, quanto a mim, não ir votar não é solução. Ah, mas votar em branco também não, respondem-me, porque o branco conta como os nulos. É verdade, e aqui está uma grave falha do sistema eleitoral português que devia ser corrigida mas que, suspeito, nunca será - o voto em branco devia ser alvo de uma contagem a par dos outros votos válidos, tal como em alguns países (não sei quais são, mas sei que existem).
Não tenho solução para o queijo. Não sou o tipo de pessoa que comece a fazer campanha ao presunto, não sou o chamado estilo "dinâmico". Vou votar, pronto. Tenho o cartão de eleitor. 
Aquela história do D. Sebastião que regressa na manhã de nevoeiro começa a parecer-me menos parva. Começo a gostar. De vez em quando, penso nisso.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Gajo que faz mesmo o meu estilo: Anthony Bourdain

Comecei a ver o programa deste senhor, "No Reservations," na SicRadical, e a princípio achava aquilo um bocado parvo, porque este Tony tem a mania de que é um rebelde mal comportado, drogas e tal, ex-portador de brinco na orelha e cigarro ao canto da boca, e tudo se conjugava para que eu o considerasse um bocado falso, ou com a adolescência mal ultrapassada. Depois percebi que ele é mesmo assim - é o chamado "cool". E , ainda que de facto insista demasiadamente na sua veia de rebelde com pouca causa, este homem é mesmo um fixe. Viaja e come com um prazer que me parece sincero, e interessa-se genuinamente pelos sítios que visita, pela comida que prova. Aprecia tudo, mesmo comida rápida, desde que seja boa. Uma vez, vi-o a provar uma sanduíche gigante, com meio quilo de bife, queijo derretido, salsichas, ketchup, salada, tudo lá para dentro, e, enquanto a degustava, dizia: "Este é o antídoto para a Alice Waters". Lindo.
Portanto, tudo o que seja delicodoce, levezinho, e chato como tudo, o Tony não gosta. A comida é para a gente gostar. Sempre que me vêm falar de comida assim e assado, ah, porque é mais saudável assim, ah, porque é mais "bio", ah, porque tem muito sal, eu respeito, sim; respeito, e levo a sério, porque, por exemplo, há determinados assuntos, como o tratamento que se dá aos animais que depois consumimos, que devem ser também levados a sério. No entanto, a onda da comida asséptica e queridinha tipo Jamie Oliver (e eu gosto do Jamie Oliver, a sério que gosto) irrita-me. Acho que só pensa em comida como se fosse uma mercadoria qualquer da moda quem nunca comeu verdadeiramente bem - e isto facilmente explica a proliferação de programas culinários fofinhos na televisão inglesa (atenção ao adjectivo gentílico), ele é Jamies, ele é Nigellas, ele é Gordon Ramsays, uns que cozinham na natureza com produtos biológiocos, outros que vão à caça, outros que fazem desafios culinários a ver quem cozinha mais depressa e melhor, tudo como se a comida, ou o acto de comer, fosse uma espécie de cristais Swarovski, não propriamente diamantes, mas algo que convém usar, ou ter em acessórios ou "bibelot" porque dá aquele toque de classe, um certo je ne sais quoi - em vez de vinagre Cristal, um balsâmico; em vez de mozarella, que também já cansa, um queijinho burrata, nome deslumbrante; em vez da tasca da esquina com bebida+prato+café a cinco euritos, porque não um gourmet low cost, onde se come alheira à mesma, mas assim como assim é mais caro, ainda que low cost - é a beleza da coisa. E é bom, em podendo, uma pessoa marcar bem o seu lugar na sociedade - a comida serve também para isso, e por mim está tudo bem, afinal, se passámos por uma ditadura, depois por uma revolução, e por tantas amarguras, já ganhámos o direito a ser finalmente burgueses, toca a aproveitar.
No entanto, tenho para mim que quem gosta de comer bem  identifica-se com certeza com o Tony, que gosta de qualquer prato desde que seja bom. Se é ou não vegetariano, se é ou não saudável, ou gourmet, disso ele já não quer saber, e pelos vistos tem-se dado bem, porque basta olhar para ele e ver que é um indivíduo todo jeitoso. Além disso, o Tony vai aos sítios, a países diferentes, e tem um olhar bem mais interessante, e bem mais profundo, do que o dito Jamie Oliver, que de vez em quando também viaja e acaba sempre por cozinhar a mesma coisa, sem grande esperteza para aprofundar costumes ou peculiaridades da região. Por exemplo, uma vez foi à Grécia e cozinhou bife de atum (!) na praia. É que me deu logo vontade de ir ali à Madeira, por exemplo, onde têm uma coisa mais ou menos parecida (só mais ou menos) e parecendo que não, sempre sai mais em conta do que ir agora apanhar avião para ir experimentar essa iguaria rara e super-grega, aliás, tipicamente grega, que é o bife de atum.
Mas não vou bater mais no ceguinho, ou como quem diz, no sopinha-de-massa, que o Jamie Oliver tem muito mérito, não é pretensioso e preocupa-se com aquilo que os miúdos comem nas cantinhas e tal. No fundo, o meu propósito era apenas e só dizer isto: gosto muito do Tony Bourdain porque, tendo sido chef profissional, tem autoridade na matéria e gosta de qualquer comida pelo prazer que a comida dá (além disso, escreve bem; estou agora a ler um dos seus livros, Kitchen Confidential, e estou a gostar bastante). 
Não me parece que a comida deva ser mais ou menos do que isto - um prazer da vida. 

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Somos todos jovens poetas

Li este livro de enfiada, porque é curtinho e porque se lê maravilhosamente bem, e lê-se maravilhosamente bem porque é maravilhoso, bem entendido. Já o devia ter lido há mais tempo - parece-me um bom livro de adolescência, mas em idade adulta é um daqueles livros fundamentais.
É espúrio tentar descrever o que me impressionou neste livro, porque todo o livro me impressionou e me ensinou coisas, mas certos conselhos houve que me pareceram particularmente relevantes:

Ninguém o pode aconselhar, ninguém o pode ajudar, ninguém. Há uma única via. Entre dentro de si (...) pergunte se morreria caso fosse impedido de escrever. Acima de tudo, na hora mais silenciosa da noite, pergunte a si próprio: tenho de escrever? Escave dentro de si até encontrar uma resposta profunda. E se esta resposta for afirmativa, se puder enfrentar esta séria pergunta com um "tenho" simples e forte, então construa a sua vida de acordo com esta necessidade...

É complicado responder a isto, mesmo para quem não é obviamente escritor; deve ser ainda mais complicado responder se se é, de facto, escritor; quantos escritores morreriam se não pudessem escrever, ou quantos continuariam a escrever se, como também discute Rilke, "o seu dia-a-dia lhes parecer pobre?". Diz o poeta que, se isto acontecer, não há que culpar o dia-a-dia, há que culpar o escritor - quem não vive sem escrever arranja sempre sobre o que escrever, não precisa de aventuras nos EUA ou Patagónia. Encontra em si o que precisa. E isto não é para todos. 
Lembra-me o que disse a minha mãe, numa das vezes em que vimos Lobo Antunes na Feira do Livro - "vê-se que é um homem que precisa de escrever".
E é mesmo assim. Há pessoas que escreverão sempre, que são escritores sempre, independentemente de publicarem livros, independentemente da crítica, independentemente de os leitores gostarem ou não deles. Precisam de escrever, e escrevem bem. O Marquês de Sade escrevia com cocó, quando estava preso. O Oscar Wilde escrevia até as luzes se apagarem no cárcere, aproveitando todos os minutos. O Kafka escrevia marimbando-se para o emprego da treta que tinha, que lhe podia tolher qualquer impulso criativo, mas não tolhia - como diz Rilke, as profissões são todas assim, cheias de imposições, cheias de hostilidade contra o indivíduo, embebidas de ódio, por assim dizer, daqueles que cumprem mudos e a contragosto os seus insípidos deveres. Não há nenhuma profissão que seja larga e espaçosa o bastante, que esteja em relação com as coisas maiores que fazem a vida genuína.
E portanto, não é este fardo que tolhe o escritor, nem deverá tolher o ser humano em geral. Todos nós temos direito às coisas maiores que fazem a vida genuína. Temos de procurar, continuar a procurar, acho eu. Como dizia Variações, continuar a procurar o nosso mundo, o nosso lugar.
Rilke e António Variações - olha que bela combinação. 
A vida consegue ser bem boa, às vezes, quando a gente se lembra de coisas assim e lê livros assim. Tão bonito.

Eleição



E como se pode ver pela coluna ao lado, a expressão da década é:
À SÉRIA
E a palavra da década é:
ESTALECA (ex-aequo com ESCAGANIFOBÉTICO).

O meu enorme obrigado aos votantes, exemplos de civismo e gentileza. A quem não votou, não vou agradecer, porque não são exemplos de gentileza, embora eu acredite que sejam exemplos de outras coisas todas elas excelsas.

Mulheres

Não sou daquelas pessoas que tem mais amigos homens do que mulheres. A maior parte dos meus amigos  é mulher (como eu, para deixar claro). Não faço nada de especial para que isso aconteça, mas o que de facto acontece é que sou mais próxima das minhas amigas do que dos meus amigos, e em geral porque as minhas amigas são mais engraçadas, e queridas, e próximas de mim, do que os meus amigos. Não sei se isto tem a ver com a tal diferença, debatida até à exaustão, do universo masculino ser muito diferente do feminino, ou de os homens andarem sempre a ver se conseguem levar as mulheres para a cama, o que eu por acaso até duvido, porque não me parece que os homens sejam todos os tarados que o resto do mundo diz que eles são, mas enfim. A verdade é que, na minha vida, as mulheres têm cumprido o papel, fundamental  e essencial, da amizade próxima, e os homens têm cumprido o papel do "estranhamento", do diferente, do estrangeiro, também estes elementos essenciais à vida e sem os quais não se pode viver. Eu, pelo menos, não posso. Mas, como a nossa retumbante língua gosta de proclamar, "cada macaco no seu galho", e a minha experiência tem ditado que os homens estão, para mim, num galho muito diferente do das mulheres. Sei que para outras pessoas a coisa já se dá de outra forma, mas para mim dá-se assim e pronto.
De modo que toda a parafernália zoológica que se costuma acoplar às mulheres, muitas vezes provinda da boca das próprias mulheres, é algo que me choca um tanto ou quanto - galinhas, cabras, peruas, vacas, toda uma miríade animalesca variada que, quase tão rica como os bestiários medievais, torna as mulheres seres híbridos, meio humanos, meio sei lá o quê, de tanta qualidade zoológica que apresentam. Também não me convence muito aquela história "ah, eu dou-me bem é com homens, eu gosto é de trabalhar com homens, que as mulheres são todas umas putas, umas invejosas, umas isto e umas aquilo". Serão, como os homens também são com certeza, mas, mais uma vez, a minha experiência pessoal tem ditado exactamente o contrário - quase todas as mulheres com quem tive de trabalhar foram umas queridas, bem educadas, razoáveis, impecáveis; quase todos os homens com quem tive de trabalhar foram profissionais, sim, mas a resvalar para o inconveniente. Das mulheres ouço "não te preocupes, amanhã reunimos à hora x e resolvemos isto em três tempos", dito e feito; dos homens, ouço "amanhã mando um email; amanhã se calhar tenho isso pronto, e a propósito, eu só não tenho affairs porque dá muito trabalho, porque senão tinha". Este comentário parece muito a despropósito, mas garanto que foi verdade.
Com estes exemplos, não pretendo vir para aqui dizer que as mulheres são todas o máximo e os homens todos uns atrasados - muito pelo contrário; afinal, tenho amigos homens que adoro e que respeito porque são seres humanos melhores do que eu, tenho irmãos que são exemplares magníficos de homens e estes sim, muitíssimo melhores do que eu, mais inteligentes, mais bom coração, tenho o Corto Maltese que é o supra sumo de tudo o que encontrei neste mundo (vamos parar agora, que isto mais um bocado parece a revista Happy ou coisa pior, Maria, por exemplo); pretendo, sim, dizer que, em geral, acho que o propósito dos homens na vida das mulheres, ou pelo menos na minha, não é bem, bem de amizade, nem bem, bem de companheirismo. Tenho um bocado a sensação de que a natureza os criou (aos homens) mesmo para outras coisas, e por mim está tudo bem, aliás, está tudo óptimo.
E esta converseta é toda para dizer o quê? É para dizer que sim, as mulheres são companheiras excelentes, são espectaculares, são amigas do peito, da vida, de tudo. E por isso é que podem, também, prender-nos em relações tão estranhamente próximas de relações amorosas - são ciumentas, possessivas, intrometidas, não me telefonas, já não me ligas, já não gostas de mim como gostavas, fiquei à espera que me dissesses alguma coisa a semana toda e nada, estiveste com quem, ah, com a tua amiga nova, não te esqueças que antes dele/dela já cá eu estava, e assim por diante. E isto vem com a amizade, não há que repudiar ou evitar, porque a amizade não é muito diferente do amor, aliás, é precisamente a mesma coisa, pelo menos ao nível da intensidade.
E assim se conclui que homens e mulheres, na verdade, são todos iguais e que vai tudo dar ao mesmo. 
Fim.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Esterilidade

Tenho pensado no Heathcliff do Monte dos Vendavais.
A ideia não é minha, mas sim de um amigo com quem estava a falar - já se sabe que Heathcliff é terrível, maldoso, cruel, mas normalmente é descrito como um herói romântico e intenso que adora a sua Catherine.Na verdade, pode também ser visto como um cobarde, que nunca conseguiu verdadeiramente lutar pelo seu amor, nunca conseguiu superar um enorme complexo de inferioridade que evidentemente tem, e consome-se no ódio e rancor típico dos fracos cobardolas, que preferem deixar as Catherines casarem com os Lintons em vez de serem eles a fincar pé e a lutar verdadeiramente pelo que querem; também preferem enveredar por um caminho de vingança e amargura, recusando conforto e paz de espírito, só porque são pobrezinhos e ninguém gosta deles. Haja pachorra.
Eu dantes até gostava do Heathcliff, mas realmente agora tenho muitas dúvidas. É um birrento. Não me parece grande herói, nem anti-herói, e certamente não será o tal herói Lord Byron de que falam os livros (sem esquecer a wikipedia). O Lord Byron morreu na guerra, ao lado dos Gregos contra os Turcos. O Heathcliff era estéril em todos os sentidos e quando morreu não deixou nada, tal como em vida nunca foi nada. Tudo dito.
Há, estranhamente, pessoas assim, não é só nos livros.

Mau pagador

Há outra conclusão a que eu cheguei e que não tem nada a ver com a máquina Nespresso, e isto já a dia 3 de Janeiro, o que dá uma excelente média. Duas conclusões no espaço de três dias - quando chegarmos ao término dos 365 diazinhos e a Terra já estiver estafada de andar à volta do Sol, bom, nem sei (ou é o Sol que anda à volta da Terra? Hmmmm... não há um indivíduo, que era o Galileu ou isso, que escreveu uma coisa qualquer que tinha a ver com isto e depois ia parando à fogueira mas vá lá, foi esperto e disse que afinal não? Agora não sei, afinal, o que disse o Galileu e a razão pela qual se retractou, se afinal estava bem que a Terra anda à volta do Sol e não o contrário). Esta última parte era a brincar, sei muito bem que é o Sol que anda à volta da Terra. Era a brincar outra vez, sei muito bem que não é assim.
Mas continuando. A conclusão a que cheguei foi que, quando as pessoas às vezes dizem que o mundo não deve favores a ninguém, ou não faz favores a ninguém, e que as pessoas não podem esperar nada de ninguém, e que o problema está nas pessoas e não no mundo, estão profundamente erradas. Consigo lembrar-me de pessoas a quem o mundo deve imenso e que podem e devem esperar tudo de toda a gente. O mundo é mas é mau pagador, mas não quer dizer que não deva às pessoas. Deve imenso.
E portanto, como diziam os soixante-huitards, deve exigir-se o impossível - que o mundo pague o que deve.  
Para início de Janeiro, acho que isto chega.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

A conclusão a que cheguei desde que me apresentaram ao George Clooney:

As pessoas falam de determinados rituais de passagem que marcam a vida adulta, ou marcam uma determinada idade, como deixar de usar fraldas (ou passar a usar fraldas), deixar de usar chupeta para adormecer, começar a sair à noite, começar a tomar café, começar a comer ensopado de borrego e gostar realmente de semelhante prato, deixar de achar piada aos Caça-Fantasmas, começar a tomar café, casar, ter filhos, comprar carro, preencher a primeira declaração de IRS, em geral, aburguesar. E isto está tudo muito bem, cada um é que sabe quais são as suas prioridades.
Por exemplo, uma das minhas prioridades é tomar café. Desenvolvi este gosto relativamente tarde, porque só iniciei seriamente a minha carreira como bebedora de café quando precisei de ficar acordada para estudar para os exames. Vai daí, comecei com umas três bicas por dia e nunca mais parei. Agora até já bebo café sem açúcar e tudo, o que é sinal de sofisticação entre as pessoas que bebem café, penso eu. E estes pequenos sinais da vidinha confortável, de uma certa burguesiazinha, o café sem açúcar, o ir ao café, o quentinho do café, digamos que me aprazem bastante.
Ora acontece que, recentemente, e por via de amigos queridos, eu passei ao nível seguinte da carreira de um bebedor de café. E qual é o nível seguinte? É ter uma máquina de café em casa. E qual é o nível ainda mais elevado? É a máquina ser Nespresso. Sem comentários, não é?
Atenção - não venho para aqui fazer publicidade, e mais, apesar de considerar o George Clooney um indivíduo de grande potencial e interesse estético, sei muito bem quando me estão a enganar. E sim, considero que de certa forma a máquina Nespresso engana as pessoas, até foi por isso que eu, quando fui à loja registar a máquina, disse ao senhor "olhe, eu compro-lho o café, que é bom, mas eu sei que isto é uma operação de marketing muito bem montada. É só para saber que eu sei", ao que o senhor respondeu, "é verdade, mas de facto o café é bom", ao que eu repliquei, "pois é, é mesmo bom". E foi assim. Acho que quem ganhou foi o senhor, mas pronto.
A verdade é que agora ando por aí com um cartão Nespresso na carteira, que nem tem o meu nome nem nada, mas que me dá acesso ao "clube" nas lojas da dita marca, e dá para eu comprar o café todo que eu quiser, fraco, forte, colombiano, brasileiro, decaf, expresso, longo, curto, cozido e assado, proveniente de uma máquina lindíssima, aquelas linhas elegantes, uma pessoa vê aquilo na cozinha e pensa "mas realmente, eu para ter este design na cozinha devo ser mesmo uma pessoa bem-sucedida". É que não dá para pensar mais nada.
Dantes, a vida burguesa era feita, talvez, dos episódios da vida romântica que o Eça descreve nos Maias, os cafés, sim, as bengaladas no Chiado, as modistas, as burguesinhas arrasadas de romance ou, mais recentemente, de telenovelas, uns sapatos novos nos anos ou no Natal, uma Coca-Cola em dias de festa; hoje em dia, a vidinha burguesa aumentou de volume, tornou-se complexa, "pós-moderna", "cosmopolita" - para quê um simples leitor de mp3 quando se pode ter um ipod, para quê comprar um jornal quando se pode ler as notícias no ipad, tão mais prático, para quê dizer "comes e bebes" quando se pode perfeitamente dizer "food and beverage", para quê ter uma máquina de café qualquer quando se pode ter uma Nespresso e viver confortavelmente rodeado deste sinais consoladores de gratificação pessoal. 
E eu, o que tenho eu a dizer de tudo isto? Primeiro, que não descobri a pólvora nem escrevi nada de novo e que não se saiba já e segundo, que gosto tanto da máquina Nespresso. É que o cafezinho é tão bom, e vem com espuma, e é tão quentinho e consola tanto de manhã. Devo ser mesmo uma pessoa bem-sucedida. Pois é.