A casa que os Maias vieram habitar em Lisboa, no Outono de 1875, era conhecida na vizinhança da Rua de S. Francisco de Paula, e em todo o bairro das Janelas Verdes, pela casa do Ramalhete, ou simplesmente, o Ramalhete.
Ouvi tantas vezes que "o começo dos Maias é uma seca, e por isso é que eu nunca consegui ler o livro. Não passo das primeiras páginas". Isto é a maior treta que eu alguma vez ouvi. O começo dos Maias é o mais elegante que conheço, e o que se segue é mestria absoluta - Apesar deste fresco nome de vivenda campestre, o Ramalhete, sombrio casarão de paredes severas, com um renque de estreitas varandas de ferro no primeiro andar, e por cima uma tímida fila de janelinhas abrigadas à beira do telhado, tinha o aspecto tristonho de residência eclesiástica que competia a uma edificação do reinado da senhora D. Maria I: com uma sineta e com uma cruz no topo, assemelhar-se-ia a um colégio de Jesuítas.
E pronto. Esta longa e irrepreensível sintaxe é uma pincelada autêntica. Um quadro. Este Eça era o maior.
Mas eu sou parcial. Os Maias é o meu livro de sempre, o meu livro absolutamente essencial e preferido. Talvez alguém conheça começos de romance melhor do que este dos Maias - excepto o começo do Pride and Prejudice, que toda a gente gosta de citar e que é uma grande seca, uma coisa do estilo "it is a truth universally acknowledged that a single man is in need of a wife", uma coisa assim. Não vou ver ao google, não quero saber. Não acho o Pride and Prejudice assim tão bom, apenas bonzinho.
Um outro grande, imbatível começo é o do The Go-Between, de tal modo que se tornou já um lugar-comum: The past is a foreign country. They do things differently there. Tem de se fazer uma pausa para absorver a verdade destas frases. Pensar bem nelas.Também gosto muito do começo calmo, pausado, de Heart of Darkness, que prepara para a tensão contida do enredo que se seguirá. É uma prosa bonita, as palavras soam bem, mais do que o seu significado - The Nellie, a cruising yawl, swung to her anchor without a flutter of the sails, and was at rest. Acho isto bonito, não sei. Flutter of the sails.Faz-me lembrar aquela letra do Chico Buarque - "a saudade é como um barco que aos poucos descreve um arco e evitar atracar no cais". As palavras do Chico são ainda mais bonitas.
O começo de In Cold Blood é outro dos meus preferidos, perfeito como quase tudo o que li de Capote - the village of Holcomb stands on the high wheat plains of Western Kansas, a lonesome area that other Kansans call 'out there'. Assustador, este "out there".
Começos melhores do que estes? Como todos os começos, serão difíceis de encontrar. Mas força.
7 comentários:
Não deve ser um concurso, mas o Lo-li-ta que toda a gente deve seguir com a língua e aquela primeira frase da Karenina também são muito bons.
sintonia (e também com a Rita Maria):
http://leitordeprofissao.blogspot.com/2011/04/os-inicios-e-os-fins.html
Não vale, Rita. Não vale, pronto! Este post era para ter sido escrito por mim! Tantas vezes pensei escrevê-lo, e agora a menina passa-me esta rasteira e adianta-se! :)
Sei de cor o princípio dos Maias, tantas e tantas vezes os reli - veja um post meu de há dias:
http://gotaderantanplan.blogspot.com/2011/04/desafio-literario.html
Outros grandes começos?
- Pride em Prejudice, sem dúvida (discordo de si, adoro o livro)
- The Go-Between, evidentemente (o meu blogue até tem uma etiqueta "The past is a foreign country)
- A Tale of Two Cities, de Dickens
- Memorial do Convento (e olhe que eu não gosto de Saramago)
- Anna Karenine, já mencionado acima
- Au Plaisir de Dieu, de Jean d'Ormesson: «Je suis né dans un monde qui regardait en arrière, le passé y comptais plus que l'avenir.» (sim, sei de cor)
P.S. E Lolita, já mencionado acima, claro.
Não conheço lá muito bem começos espectaculares porque só leio em português e aqui gostaria de citar dois.
Um os Lusíadas que não vale a pena estar a repeti-lo pois toda a gente com mais de 56 se lembre dele e é pena que agora quase ninguém se lembre do que já fomos e com menos de 20 nem saibam que este tijolo existe (ou existiu)
E curioso como "já fomos" agora é uma interjeição de derrota e não de orgulho.
O outro é absolutamente desconhecido, é uma autobiografia de Nuno Rocha (director do extinto jornal Tempo) intitulado "Memórias de Um Ano de Revolução" e que começa assim:
A voz ao memo tempo estentórica e magoada da minha mãe acordou-me e ouvi-a dizer entre soluços secos:
-Meu filho, meu filho, eles vêm buscar-te ...
O meu sono tranquilo uma vez despertado permitiu que eu descerrasse as pálpebras com dificuldade
"a partir daqui qualquer romance de Alexandra Dumas serve para a continuação".
'aujourd'hui, maman est morte.'
(freud deve explicar, mas é sempre deste que me lembro nestes exercícios de 'bons inícios de livros')
qt aos maias, o meu maior desconsolo é ver os meus alunos (com quem tenho andado às turras nos últimos dias tentando-os convencer a ler a obra e não aqueles resumos europa-america) a fugir-lhe como diabo da cruz. e fico a pensar que o que os professores de portugues deviam fazer era ir-lhes lendo em voz alta alguns extractos, paulatinamente, ao longo do ano, escolhendo sem parcimónia vários do joão da ega, para que finalmente eles pegassem no calhamaço com curiosidade efectiva de o ler.
(a bem dizer, o que fiquei a pensar é que eu, sem ser da disciplina, o deveria ter feito este ano: é uma pena que alunos tão brilhantes que ali tenho passem pelo 11º ano sem ler esta obra-prima)
Experimenta ler a "Reliquia" do Eça... vais ver que te agarras do principio ao fim.
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