Eu conheci a C. há dez anos. Éramos duas galinhas malucas, sem mais nada que fazer do que calcorrear a pequena cidade onde vivíamos, falar do curso que estávamos a tirar e trocar canções, livros, cds, dvds, batons, pulseiras, roupa, ganchos para o cabelo, chapéu. Falávamos dos namorados que tínhamos, que queríamos ter, que havíamos tido, e de que como eram todos uns parvos e nós mais parvas ainda por gostarmos deles, e ríamos por causa disto. Falávamos de como era bom estar ali, naquela pequena cidade por onde percorríamos todas as ruas, de como era bom não ter mais nada que fazer se não estudar, eu queixava-me de ter de escrever os mini-trabalhos para Sintaxe, que detestava, e a C. ajudava-me, ela que era, e ainda é, um ás na Sintaxe, uma chomskyana irredutível e competentíssima. Em compensação, eu conseguia ser ligeiramente melhor a Fonologia, e tentava ajudar a C. por aí. E entendíamo-nos bem.
A C. fumava muito e eu pedia-lhe sempre para nunca deixar de fumar, porque ela fumava tão bem, parecia uma versão mais nova e morena das starlets dos anos 40. A C. ria-se e dizia que gostava muito da teatralidade do cigarro. Ao fim da tarde tomávamos café, ou íamos ao inenarrável "pub" e olhávamos para os caloiros entretidos no "pub crawl", perdidos de bêbedos, mas sempre muito educadinhos. Surpreendentemente. E ríamos e ríamos e falávamos do Pulp Fiction e atirávamos as falas uma à outra, eu imitava a vozinha irritante e doce da Maria de Medeiros, "whose motorcycle is this", depois a voz mais despachada do Bruce Willis, "it's a chopper, baby", "whose chopper is this", "Zed's dead, baby, Zed's dead", e esta era a minha fala, e a da C. era "I say god damn, god damn, god damn", e esfregava o nariz da forma elegante como a Uma Thurman o fazia depois de inspirar a cocaína. É claro que a C. não tinha nenhuma cocaína, aquilo era tudo a brincar.
E, nessa altura, quando éramos assim, tudo o que conhecíamos e queríamos resumia-se àquilo, a filmes de que gostávamos, a música, a tudo o que não tinha importância, e às vezes o Corto Maltese pegava na guitarra e começava a tocar, a C. cantava e eu ficava ali a olhar para eles, a aplaudir secretamente, encantada.
Era, portanto, como a música do Paulo de Carvalho, mas sem a parte da "Nini" - eles cantavam uma música só para mim e eu olhava, olhava.
E desde então é só recordar. A C. é respeitabilíssima, e esperançosamente eu também, e já não cantamos no meio da rua nem nada. A C. vai-se casar e tudo, e eu acredito no casamento, a sério que sim, quer dizer - é o pior dos estados à excepção de todos os outros e é quase inevitável. Não nascemos para estar sozinhos. Mas também é o fim de uma era. Não vale a pena pensar que ainda podemos fazer isto ou aquilo, porque não podemos. Acho que quando a vida se compõe e a pessoa se casa ou tem filhos ou, sei lá, de uma forma ou de outra se acalma, há muitas portas que se abrem e é um momento feliz. Mas fecha-se definitivamente a porta a tantas outras coisas, coisas que passam a ficar só, apenas e só, na nossa memória. E nada disto é mau - é assim, apenas.
Bom. Hoje estou melancólica. Acontece.
I say god damn.
3 comentários:
há coisas que se fecham para sempre; não perdem sentido nem se destroem - apenas se lhes esgotaram os devidos tempos e espaços. ficam ali, carinhosamente guardadas algures.
grande reflexão. sim.
Pois é... suspiro.
opaaaaa, este texto está TÃO delicioso!...
Enviar um comentário