terça-feira, 5 de julho de 2011

Os absurdos da boa-educação

Há uma história deliciosamente absurda que tem entusiasmado a imprensa inglesa nas últimas semanas, de tal modo que é notícia e artigo e colunas de opinião em todos os jornais, desde os tabloids mais manhosos até aos respeitáveis Guardian e Observer - e a história é a de um rapaz que leva a noiva a passar um fim-de-semana em casa dos pais, sendo que a noiva recebe depois um email da futura sogra a desancar, desagradavelmente, as suas limitações naquilo a que habitualmente chamamos "boa educação". Segundo a sogra, a sua futura nora não devia ficar na cama até tarde quanto todas as outras pessoas que habitam na mesma casa se levantam cedo; não devia começar a comer antes das outras pessoas à mesa, nem avisar os outros relativamente às suas exigências alimentares; após o fim-de-semana, deveria ter escrito um bilhete, à mão, a agradecer a hospitalidade; e, fundamentalmente, não deveria ter nenhuma intenção de casar num castelo, como parece que é o caso. Diz a sogra que, uma vez que os pais da noiva não estão em condições de pagar a cerimónia, a noiva que se aguente à bronca e escolha uma festinha mais modesta. Tudo explicado aqui.
Os protestos desta sogra até terão alguma razão, mas tê-los escrito num abrupto email, que a noiva se encarregou de reenviar aos amigos todos até o mesmo email se tornar notícia, é que foi de facto estúpido, e encerra mais "má-educação" do que aquela que inicialmente originou o protesto. 
E isto para dizer que esta sogra deve ser a encarnação de todas aquelas pessoas absolutamente confiantes nos impecáveis modos que (não) têm - lembra-me a senhora que gostava de anunciar ao mundo que jantava imensas vezes fora nos melhores restaurantes, porque tinha um estilo de vida assim, mas que comia como um passarinho, e quando o empregado lhe perguntava se queria sobremesa, ela respondia, irrepreensivelmente, "não, obrigada, estou cheia". Pensar neste exemplo de recomendáveis boas maneiras.
A chamada "boa educação" é uma faca de dois gumes, que tanto dá para o torto como cumpre exemplarmente a sua função, com a agravante de que toda a gente tem sempre muita opinião díspar sobre isto. Nem sequer vou mencionar o malfadado "você", por exemplo, que alguns consideram formal, e outros abominam (eu tendo a abominar); mas há inúmeros casos em que se tenta ser bem-educado e os planos não resultam, como a senhora dos restaurantes que anuncia que está "cheia". Penso que é a Ana Luísa Amaral que tem um poema em que se queixa do senhor do café em Londres que a trata por "love" - é desagradável, porque ela não é o "love" dele. No entanto, o senhor do café, garantidamente, estava apenas a demonstrar a sua concepção de delicadeza. Quando ontem fui comprar o jornal, o senhor do quiosque saudou-me com "darling", eu pedi desculpa por não ter troco e ele disse "it's ok, honey" e disse-me adeus com "bye, bye, sweetheart". Não me incomodou nada, o homem estava só a tentar ser afável, e todos os termos carinhosos que utilizou são completamente desprovidos de qualquer significado que não seja este mesmo, o de comunicar afabilidade, delicadeza.
E a cortesia, a delicadeza, a boa-educação, tudo coisas que foram feitas para gostarmos mais uns dos outros, para a sociedade se aguentar (alguns linguistas até chamam a isto "lubrificantes sociais", expressão de absoluto sucesso que só poderia sair da cabeça de um académico), acabam, por vezes, por ter o efeito contrário e gerar batatada. Ou barracada. Ou o contrário de "lubrificante social", que eu nem quero saber o que é. 
O que é preciso, o que seria necessário, era que toda a gente fosse um bocadinho mais natural, mais descontraída. Baldassare Castiglione (escrevi sobre ele antes), que escreveu um manual de boas-maneiras que se tornou best-seller na Europa seiscentista, falava precisamente disto - o cortesão é tanto mais gentil-homem quanto mais natural consegue ser. Sem esforço, descontraído.
Era bom que a sogra que escreveu o email absurdo soubesse disto, assim como a nora que o reenviou aos amiguinhos, assim como as pessoas que se ofendem quando são tratadas por "love", e etc. e etc. Se nos insultarem, que nos ofendamos, mas fora isso, ir com calma. 
De vez em quando, penso nestas coisas. Acho que são importantes. Quase mais ninguém acha. Mas é assim, cada pessoa é uma ilha, como cantava o outro. Não, são os outros, são o Simon e o Garfunkel. Vou acabar por aqui.

5 comentários:

Anónimo disse...

Este blogue é NATURALMENTE bom, caramba!
Inês

Anónimo disse...

Sugiro a leitura do "Manual de Civilidade para Meninas", isso sim a boa educação!!!

Rita F. disse...

Inês, naturalmente obrigada! :D

Manual de Civilidade para Meninas, Pierre Louys - é um manual de etiqueta, sim senhora. Etiquetas há muitas.

SEVE disse...

Inês, eu diria mais - INCRIVELMENTE bom

Anónimo disse...

horripilante: o senhor do talho (pingo doce) insiste em chamar-me "minha santa" :p

H

ps. totalmente de acordo com a inês :)