terça-feira, 1 de março de 2011

Comment is free, but facts are sacred

Não compreendo muito bem a eficiência da moderação de comentários no Público (e antes que me esqueça, peço desculpa por mais um piroso título em inglês que nem sequer tem muito, muito a ver com o post, mas é o mote do Guardian e, enfim, eu achei que dava um certo élan, um certo nível, à coisa).
Estava a ler esta notícia, sobre o protesto da "geração à rasca" (bolas, a minha geração nunca foi capaz de atrair nomes bonitos, é cada um pior que o outro, só dichotes e enxovalho; alguém devia tomar uma atitude em relação a esta miséria linguística, que, em conjunção com o recibo verde, levanta sérios problemas de auto-estima e confiança), dizia, estava então a ler a notícia, e decidi ler os comentários também, num acto claramente sado-maso, porque a gente já sabe de antemão que, por qualquer razão misteriosa, os comentários do Público, salvo algumas excepções, conseguem ser dejectos tão grandes como os do Correio da Manhã ou coisa parecida. Mas pronto, sem salvação possível, fui ler os comentários. As pérolas que lá aparecem, já sem sequer atentar na cuidada ortografia que apresentam, são sinais da grande inteligência, presciência e argúcia com que este país pode contar: desde meninos mimados que não levantam o c* para ir votar, passando pelo lugar-comum de a tropa e a Guiné é que era, até acabar em elucidações como a culpa é toda dos licenciados porque escolhem cursos sem saída, a culpa é dos licenciados que não procuram como deve ser, eu por exemplo procurei e num mês tive logo duas ofertas, a culpa é dos jovens, mais uma vez mimados, que dão o corpo ao manifesto no facebook, mas quero ver quantos lá aparecem prontos a partir tudo no dia da manifestação em si, preguiçosos, indolentes, isto e aquilo.
Não são só os mais velhos que destilam fel sobre uma geração que, pelos vistos, não respeitam muito por motivos que nada têm a ver com a própria geração (o Ultramar, a falta de possibilidades para estudar quando se calhar até queriam, e de facto deve ser difícil assistir a hordas de pessoas que se vêm queixar depois de terem conseguido efectivamente tirar um curso, coisa que há uns anos atrás era, injustamente, só para alguns); mas, dizia, não são só os mais velhos, ressequidos e ressabiados, que se indignam contra esta geração que apelidam de "meninos mimados" - são, muitas vezes, os membros desta designada "geração à rasca" que se acham, por qualquer razão, moralmente superiores aos que se queixam, como se fosse sinal de fraqueza, torpeza ou cobardia alguém queixar-se de coisas que são notoriamente inaceitáveis. E, contra esta geração, insurgem-se também pessoas notoriamente privilegiadas, sem autoridade para dizer o que quer que seja pelo conforto que sempre detiveram, e que com nada contribuem sem ser com a imensa arrogância dos instalados na vida (vide esta outra pérola). 
E de modo que o problema está precisamente aqui - na pouca inteligência que este debate sobre a geração à rasca tem revelado. Os problemas com que a minha geração se debate não são só problemas geracionais, são problemas infelizmente estruturais, endémicos, permanentes, que afectam não apenas os licenciados, mas todos os jovens e trabalhadores em geral. Fragmentar uma possível discussão e resolução do problema como se se tratasse de uma questão que afecta apenas uma geração é algo absolutamente estúpido, sem outra palavra que o possa descrever. Alguém pode encarar a precariedade dos licenciados, e/ou das pessoas que trabalham, como outra coisa senão como um atraso profundo que demorará anos a ser ultrapassado, se for ultrapassado de todo? De onde é que vai vir o dinheiro das reformas? O dinheiro para o sistema nacional de saúde? O dinheiro para a educação? O dinheiro para, em geral, gerir um país inteiro? De pessoas que fazem descontos de salários de 500 euros por mês ou menos? Vai lá, vai, como dizem, lá está, os jovens rascas. E, uma vez que falamos disto, que tipo de pessoas serão estas? A que tipo de escolas e educação tiveram acesso? Quantas línguas falam e onde as aprenderam? O que sabem, de facto, fazer? O que lhes ensinou a universidade, e que recursos tinha esta universidade? Que tipo de trabalho estão aptas a cumprir, e que tipo de trabalho conseguirão arranjar? Como é que um país que não investe em gente forte, qualificada, inteligente, se vai safar para conseguir ter gente forte, qualificada, inteligente para tomar decisões? A não ser, claro está, que achemos bem que aqueles que vêm de certos ambientes familiares, resguardados e privilegiados, façam a sua vida lá fora ou cá dentro, tanto faz, porque a eles tudo lhes correrá sempre bem, e os outros, os que apenas podem contar com os recursos públicos para fazer pela vida, se afundem no mundo de mediocridade e mediania a que certamente pertencerão, porque não vão conseguir acesso a mais - se a escola lhes passar a ensinar horários de comboio em vez dos Lusíadas, a cabeça não vai dar para mais. E é isto que, cada vez mais, se promove em Portugal, e é contra isto que, evidentemente, algo tem de ser feito - o protesto da Geração à Rasca é  um começo. Não o vejo como um movimento de meninos mimados (é preciso muita lata para chamar a esta gente que se desunha meninos mimados, mas pronto), mas sim como um começo para uma solução que se espera inteligente.
E pronto, isto vinha tudo a propósito da pobreza dos comentários no Público e de como devia haver uma moderação muito mais eficiente. Mais uma vez, destilei-me eu de toda a fel, mas assim como assim, isto é um bloguezinho pessoal, portanto posso vir para aqui escrever o que me apetecer em vez de abreviar tudo num comentário foleiro online. A quem leu até ao fim, o meu sincero obrigado e votos de uma boa continuação.

4 comentários:

Maria Flausina disse...

Eu li até ao fim, e eu é que agradeço!
Foi o melhor post que li desde que começou esta "deolindesca" história, onde muito se tem escrito e dito, e quase sempre bastante radicalizado. Ou é tudo ao mar ou tudo à terra!
Aqui sim, fala-se com algum equílibrio e razão.
Eu tenho 40 anos, já nem sei a que geração pertenço, mas acho que neste momento todas as gerações estão a entrar num beco sem saída, e todos nós deveríamos empurrar para o mesmo lado e não puxar cada um por si...

S. G. disse...

eu li até ao fim, como quase todos os posts, e tenho a dizer que qualquer dicussão que aglomere e agrupe em manadas uns e outros, não é uma discussão saudável...

tenho a certeza que há nessa geração "guiné" (e eu conheço-os...) gente que nunca descontou um único cêntimo, trabalhando na completa ilegalidade, clandestinos e sorridentes que se queixam que não há dinheiro para a saúde (e reformas...)

também tenho a certeza que há na "geração à rasca" gente que não quer trabalhar! pura e simplesmente adiará a entrada no mundo do trabalho até ao limite do sustentável, muito por culpa dos pais, e da sociedade que lhes mostrou um mundo (anos 80 e 90) sem dificuldades, incutindo a ideia de que tudo lhes é devido e nada lhes é exigido.

é isto e o completo contrário. mas não quero correr o risco de isto parecer a caixa de comentários do público.

cheers

Rita F. disse...

Maria Flausina, pois é, o que eu espero é que se encontre uma solução viável para o país em geral. Se possível, com alguma inteligência.

SG, sim, há de tudo em todo o lado. E é verdade que há grande facilitismo hoje em dia, em muitas áreas e em muitas gerações, e que esse facilitismo afecta, por exemplo, a educação, o que é uma coisa gravíssima. E por isso mesmo, continuo a achar que não adianta ver os problemas do país como geracionais, mas sim como estruturais. Afectam toda a gente, todos os cidadãos, contribuintes, eleitores, o que lhes queiramos chamar. Ou perdemos tempo a criticar os que não fazem nada (e de facto estão em todo o lado, geração à rasca ou geração Guiné), ou perdemos tempo a criticar-nos a nós próprios, ou emigramos, ou exigimos solução, para deixarmos de ser "país adiado", como dizia o Fernando Pessoa. Estou tão farta de adiamentos, sinceramente...

Anónimo disse...

Parabéns pelo artigo. Como dizem os brasileiros, AMEI!