quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Cantar a gente surda e endurecida

Vejo semelhanças n'Os Maias e n'O Ano da Morte de Ricardo Reis. Quanto mais penso neles, mais semelhanças vejo. Até chego a pensar no Ano da Morte como Os Maias em prosa poética. O contraste está precisamente aqui, na poesia que é a prosa do Ano da Morte e na narrativa realista, propositadamente viva e absolutamente novelística, dos Maias.
Ambos são livros, histórias, sobre Portugal. Ambos têm como conclusão fundamental uma posição muito clara sobre a chamada "portugalidade". Ambos representam uma possível mudança nesta entidade estranha que é a "portugalidade"por via de duas personagens masculinas estrangeiradas, distintas da massa de Lisboa, iniciadoras da história - Ricardo Reis, recém chegado do Brasil, Carlos da Maia, recém-chegado das suas muitas viagens por países civilizados e cosmopolitas. Por ambas as obras perpassa um cinismo quase existencial. A diferença é que, no Ano da Morte, o cinismo está em Ricardo Reis, a personagem, e nos Maias o cinismo provém do narrador, interveniente nos comentários impiedosos, duros, entristecidos, que lança sobre os enredos e as personagens. Chega-se a ter pena das personagens e quase do pobre país, levado ao extremo do ridículo naquele delirante, medíocre, cruelmente engraçado sarau da Trindade. N'Os Maias, o narrador nunca cede, ou por outra, cede apenas no final - sei que o final dos Maias é visto com grande pessimismo, o país perdido, e a sua única esperança, o superior Carlos da Maia, reduzido ao dandy rico e inútil, mas eu penso que há, no término desta obra, um folgo vivaz de esperança, de algo melhor que ainda pode acontecer. "Ainda o apanhamos, ainda o apanhamos" - João da Ega e Carlos ainda poderão fazer alguma coisa pela sombria estátua de Camões, outra esperança perdida que eles talvez possam resgatar da apagada e vil tristeza.
O final do Ano da Morte é, quanto a mim, parecidíssimo, com a importante diferença, porém, de não deixar grande espaço para o optimismo. Ricardo Reis falha do princípio ao fim, deixando tudo perdido na inconsequência. Versos, poesias, o amor de uma boa mulher, como Adrian Mole definia a sua Pandora (referência despropositada, esta, mas lembrei-me dela), possíveis contestações políticas anti-fascistas, anti-pidescas, tudo cai em derrocada.
No fundo, talvez Os Maias o O Ano da Morte me pareçam semelhantes porque há neles uma relação íntima com Portugal que se estabelece através de personagens que parecem tão vencedoras e que, em última instância, perdem. E, como padroeiro de toda esta reflexão literária e quase interventiva sobre o país, como grande impulsionador do pensamento sobre o mal-estar português, estarão muitas pessoas de que eu não faço ideia, mas está com toda a certeza Camões e a desilusão que cristaliza nos Lusíadas e nos seus lamentos profundos sobre o desconcerto do mundo. Ouvi uma vez alguém dizer que Camões representava o lado solar da literatura portuguesa, ao passo que Pessoa materializava o lado lunar. Não concordo nada (humildemente, acrescento, que fica sempre bem). O lado negro, pessimista, de Camões, e que é inultrapassável e sublime, é fundador deste tal mal-estar, que depois resulta nos Maias, resulta no Ano da Morte, resulta no pensamento de Eduardo Lourenço e o irrealismo prodigioso com que nos define, resulta até em Sinais de Fogo, esta glória do romance português, de Jorge de Sena, que estou agora a ler, e que teria de bom grado introduzido neste post se já o tivesse terminado.
Bom. Quer dizer, isto é só a minha opinião.

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