Há tanta gente que quer escrever, escrever, escrever até morrer, não fazer mais nada, que não quer ter de se preocupar com mais nada, não quer depender de um "emprego" para pagar as contas e forçosamente perder tempo que podia aproveitar para escrever, e estas pessoas têm talento, pelo menos conheço algumas que têm, que escrevem bem melhor do que os Pedros Boucheries Qualquer Coisa deste mundo e a eles ninguém lhes edita livro nenhum (e não, não estou a falar de mim, eu nunca escrevi qualquer romance nem tenho um amontoado de folhas na gaveta à espera que o meu Max Brod revele a sua glória ao mundo).
E porém, de certa forma, estou a falar de mim. Gostava mesmo que me pagassem para escrever, não precisava de ser muito, precisava de ser o suficiente para eu deixar o "emprego" e não ter de me preocupar com as misérias de todos os dias, as misérias que necessariamente acompanham o "emprego".
E sei que tenho sorte, apesar de tudo. Não me pagam para escrever, mas também não me faltam ostensivamente ao respeito. No outro dia, por exemplo, fui ao Aki em demanda da minha primeira árvore de Natal, isto é, a primeira que a minha casa vai ter (em anos anteriores, a minha árvore de Natal era a da casa da minha mãe, mas este ano, e por motivos de força maior, vou ter uma também em minha casa, mas adiante!), dizia, estava eu no Aki e ouço um senhor que lá trabalhava, por acaso até com um ar simpático, dirigir-se assim a uma outra funcionária: "ó não-sei-quantas, acabe de limpar isto aqui e depois vá até ali ter com o não-sei-que-mais e tratem daquele assunto que eu vos disse para tratar". Isto dito de forma abrupta, assertiva, não propriamente mal-educada, mas imperativa demais para meu gosto. Que faria eu se tivesse um emprego em que a entidade patronal se dirigisse a mim nestes termos? A não ser que se tratasse de flagrante falta de respeito, o que não era o caso, provavelmente não poderia fazer nada. E percebo que a vida das pessoas em geral, e a minha também, é assim, engolir imposição atrás de imposição, coisa que apenas é amenizada quando se tem a sorte de trabalhar num sítio em que as pessoas procuram ser amenas e fingem que são todas iguais. É um fingimento, mas ajuda a suportar o dia-a-dia, acho eu.
E voltando à escrita. Vi ontem uma entrevista antiga com Saramago, na RTP Memória, e ele dizia que não percebia o conceito de arte pela arte, que o escritor não vive em torres de marfim, o escritor é um homem que vive no mundo, para o mundo, para as pessoas. E que os livros se fazem disso, de pessoas, de mundo. Eu acho que concordo (embora a ideia da torre de marfim me agrade), e precisamente por isso, porque o escritor é do mundo, seria bom haver escritores a viver apenas e só do mundo, para a escrita, sem necessidade de mais nada, sem necessidade do emprego do Kafka na repartição, por exemplo. Como diz Rilke, e como já citei e volto a fazê-lo, as profissões são todas assim, cheias de imposições, cheias de hostilidade contra o indivíduo, embebidas de ódio, por assim dizer, daqueles que cumprem mudos e a contragosto os seus insípidos deveres. Não há nenhuma profissão que seja larga e espaçosa o bastante, que esteja em relação com as coisas maiores que fazem a vida genuína.
E para acabar, é bom que fique claro que não estou aqui a dizer que o desemprego é benéfico e etc. Sei que o desemprego é trágico, e este post, ao falar de "emprego", não visa sequer tocar neste assunto. Apenas digo que os empregos, quando se arranjam, nem sempre respondem a tudo o que nós queremos. Às vezes, até nos emaranham mais a vida. Como diz Truman Capote citando Santa Teresa d'Ávila (eu cito Capote e por isso vai em inglês), more tears are shed over answered prayers than unanswered ones.
E por hoje é tudo.