O Marx falava da mulher duas vezes escrava, duas vezes proletária; fundamentalmente, uma das consequências (nefastas, neste caso) da mulher que é obrigada a entrar no mundo do trabalho (sim, porque muitas mulheres o fizeram, desde sempre, por necessidade e não por emancipação), dizia, uma das consequências é, então, a mulher ter de ganhar um salário e acumular com todo o trabalho doméstico, limpar a casa e tratar dos filhos, sem ajuda nenhuma, sendo o homem o grande ausente.
As pessoas dizem, "ah, hoje em dia é diferente. Hoje em dia o homem já 'ajuda'". A escolha lexical em si diz muito - o homem "ajuda". Se hoje em dia fosse assim tão diferente, o homem não ajudava, o homem fazia tanto como a mulher, e não se trataria de uma ajuda, mas sim de fazer o que precisa de ser feito.
Continuo a constatar que a grande responsabilidade das tarefas domésticas, aquelas mesmo pesadas, aquelas em que a casa precisa até de paredes esfregadas, colchão mudado, o quarto dos miúdos tem de ter uma cama nova, os jantares da semana precisam de ser pensados e as compras feitas, a roupa tem de ser lavada, estendida, a de Inverno vai para o armário e a de Verão salta cá para fora, este tipo de coisas aborrecidíssimas, todas elas, continuam na sua maior parte incluídas na esfera de jurisdição da mulher. O homem, quanto muito, "ajuda".
Há várias teorias para isto (pelo menos, eu tenho várias) - uma cultura que ainda promove o varão como o bem precioso da família (quando eu era pequena, ainda se falava de agregados familiares - adoro esta expressão - em que a irmã fazia a cama do irmão, bdeeeach. Felizmente, há anos que não ouço falar disto); o facto de, pelo menos em Portugal, ainda haver muito o hábito de só sair de casa para casar, talvez porque viver sozinho requer dinheiro que as pessoas não têm, e o resultado é que se começa uma vida de casal com os vícios todos da casa dos pais, o jantar na mesa, a casa limpa quase magicamente. Já para não falar do perigo extremo de começar uma vida de casal cedo demais, em que ninguém alcança qualquer independência. Mas isso é outra conversa.
Sei que, de facto, as coisas estão a mudar, e ainda bem. Conheço muitos homens que vivem ou viveram sozinhos, que naturalmente tratam da casa tanto quanto as companheiras, porque é a ordem natural das coisas. Mas também vejo imensos casais em que é a mulher que tem de pensar no jantar todos os dias, e na roupa que os filhos vão levar para a escola (por essas e por outras é que um uniforme nas escolas públicas dava imenso jeito; não sei do que estão à espera), e ajudar nos trabalhos de casa, e na pilha de roupa para lavar, de tal forma que o som do tambor da máquina a rodar já lhes deve dar vontade de desatar aos berros.
O que acho é que cada mulher devia ter um Corto Maltese que cozinhasse, limpasse, fosse às compras tanto quanto elas, porque o Corto Maltese é naturalmente assim e porque é assim que deve ser - naturalmente, reitero. Infelizmente, é também uma raridade.
Por isso, quando as pessoas se riem dos filósofos antigos, em particular do Marx, que confundem com o mau aproveitamento que se fez das suas ideias, e dizem que é obsoleto, e que nada de relevante tem a dizer, eu não poderia concordar menos. Tem muito de relevante a dizer, e em particular isto - duas vezes escrava, duas vezes proletária. Quem pensar que isto é obsoleto terá, penso eu, de avaliar bem em que mundo pensa viver e em que medida o conhece.
1 comentário:
Lindo! Absolutamente de acordo. Bem, já fiz o almoço de hoje e já esfreguei as paredes. Onde está o meu boné de marujo? Ah, cá está.Tenho de ir, o barco não espera.
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