quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Medo

Estou em Londres.
Ontem tentei ir ao supermercado - um tinha sido pilhado, o outro estava fechado, assim como a maior parte das lojas e cafés nas ruas por onde passei. Hoje, já se respirava de outra forma - mais cafés abertos, mais pessoas na rua. Tudo ordeiro, mas ainda nuvens pesadas na atmosfera, uma tensão claramente presente.
Porque a minha mãe mo disse desde pequena, sempre tentei que o medo nunca definisse as minhas decisões, e até agora tenho sido bem sucedida, julgo. É também verdade que tenho tido sorte, muito mais do que coragem - as razões para ter medo nunca foram, até agora, significativas, e não consigo imaginar as vidas das pessoas que vivem em partes do mundo que incompreensivelmente não lhes permitem dignidade, liberdade, ar para respirar. Assim, eu sempre pude voar para onde queria sem medo de bombas ou terrorismo, ainda que o 11 de Setembro tivesse ocorrido há cinco dias, e não me assustei no dia em que estava no metro em Londres e a estação teve de ser evacuada, com a ameaça de uma réplica do ataque de 7 de Julho, também ele ocorrido há apenas dias. Nunca fui especialmente corajosa - apenas recusei que o medo tomasse as minhas decisões por mim ou definisse a minha vida. 
E porém, há duas noites atrás, não pude evitar este sentimento opressivo, que nos tolhe horrivelmente, e que penso ser medo. Medo de sair à rua ou até de espreitar pela janela. Ouvir uma voz lá em baixo, que felizmente se afastou com rapidez, e apagar a luz imediatamente, para não gerar atenções indesejáveis. Um receio irracional de ouvir os passos e as desordens de uma horda apocalíptica a pedir sangue e a entrar-me casa adentro. E, penso eu, o grande problema do cenário indescritível em Londres, alastrado agora a outras cidades inglesas, é o medo. O medo que nós temos deles e que eles têm de nós, o medo que leva a esta divisão maniqueísta entre as "boas" pessoas assustadas dentro de casa e os "maus", lá fora, que querem destruir os "bons". O medo das pessoas que foram para a rua partir tudo, como se isso fosse solução para a vida perdida que têm ou que alguém lhes deu. O que aprendi há duas noites é que o medo é perigoso porque não deixa pensar - é fácil passar do medo ao ódio, odiamos aquilo de que temos medo, e nenhum argumento ponderado ou inteligente parece contrariar esta sucessão irracional. E o Homem, aprendemos nós na escola, é o único animal racional do planeta.
Esta massa irracional, que nem sequer protesta contra nada, sem critério, acrítica, que já matou gente e destruiu tudo o que encontrou à frente, é estúpida, e por isso perigosíssima, como normalmente a multidão é, mas os actos que perpretaram não poderão ser inconsequentes. Pelo contrário, as consequências (e as causas) daquilo que se passou têm de ser levadas muito a sério, e não com operações necessárias, mas epidérmicas, de mais policiamento, mais robustez e rapidez por parte das autoridades, mais discursos fáceis de David Cameron, que ainda há pouco anunciou que há "pockets of British society who are not just broken, but frankly sick". Pois é, mas isto não é nada de novo. Gente nova, desempregada, que quase nunca vai à escola porque não se levanta de manhã e ninguém quer saber, que mal sabe ler, filhos de gerações de desempregados, e que sempre aproveitou qualquer oportunidade para exibir um comportamento anti-social não é nada de novo em Inglaterra, pelo contrário - é um problema de décadas. Mas, como quase sempre se passa em Inglaterra, toda a gente é tolerada, mas pouca gente é integrada. Se este país tem uma história admirável de tolerância, a integracão já é outra história, de modo que há comunidades inteiras, emigrantes ou não, minorias ou não, desempregados ou não, pobres ou não, que vivem lado a lado e nunca se vêem, quase nunca interagem, porque as divisões culturais e/ou económicas que os dividem são enormes, abissais - até ao momento em que tudo explode. A classe, seja ela qual for, e as divisões que traz consigo, continuam bem presentes em Inglaterra, e tudo é pretexto para novas destrinças, para marcar a contradição - novos contra velhos, polícia contra civis, estrangeiros contra nacionais, ricos contra pobres, inteligentes contra estúpidos. E infelizmente os estúpidos demonstraram o seu poder espúrio quando saíram à rua na onda de destruição irracional em que embarcaram. Nem todos eram desempregados, jovens, sem futuro - muitas das pessoas que foram presas eram adultas, com empregos razoáveis, ou estudantes universitários. Que desculpa é a deles? 
A BBC dedicou as notícias de hoje à procura de razões para a violência que assola o país. Falou-se de tudo - desemprego, famílias sem estrutura, materialismo, a procura de gratificação rápida e fácil, ganância, falta de acesso a educação e emprego, desresponsabilização (?) de pais e jovens, que acham que a culpa nunca é deles e que o mundo lhes deve tudo, sentimento de revolta e discriminação, etc. Não duvido que todas estas razões sejam válidas, embora nada justifiquem, e é evidente que será fundamental reflectir a fundo sobre as causas dos motins e desta violência extrema. 
Mas nada vai mudar enquanto a divisão entre "nós" e "eles" continuar, aquela que o medo recíproco promove, aquela que o alimenta. E a luta fundamental será sempre, penso eu, contra a estupidez, a mesma que permite que uma multidão inteira se vanglorie de violência e pilhagem, a mesma que permite discursos fáceis em que se ameaça a ralé de mão pesada. É claro que agora é preciso mão pesada, mas o que é que se fez antes, quando os mesmos problemas já existiam?
Não tenho solução nem explicação para o que se passou, obviamente. Mas sei que as fracturas que agora nos chocam tanto foram abertas há muito e continuam expostas. E que rapidamente, de um dia para o outro, nos batem à porta, a nós, os bonzinhos, os que pagam impostos, os que estão em casa. E se tudo mudar para tudo ficar na mesma, vai chegar o dia em que a nossa porta é arrombada. E o que fazemos nesse dia? Sair de casa "with your finger on your gun", como cantavam os Clash? É esta a solução? 
Só sei que nada sei, pá. Mas não gostei de ter medo. 
(desculpem o texto tããããõ longo, e obrigada a quem leu).


10 comentários:

Destination disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
stiletto disse...

Muito bom o teu texto. Um retrato, provavelmente, muito mais fiel do que o que nos chega através da comunicação social porque é traçado por alguém que o viveu em primeira mão. Que sociedade é esta que estamos a construir não é? Espero que tudo se vá resolvendo por aí.

Anónimo disse...

A tolerancia a mais e a liberdade a mais não podem trazer boas consequencias... e Londres é demasiado tolerante! Os londrinos ficam apavorados se alguém lhes aponta indícios de estarem a discrimir alguém, a polícia é sempre "muito polite" e não se arrisca a levantar um dedo, e com isso toleram que eles próprios sejam discriminados, vivem oprimidos pelos direitos das outras comunidades e deixam que estas se sobreponham aos seus próprios direitos e à cultura inglesa! Parece que ali todos mandam mais que os ingleses! Não podemos ser repressivos mas tb não devemos ser parvos!

stiletto disse...

Espero que não te importes que eu te mencione no meu blogue.
Obrigada
Bjs

Pedro Jordão disse...

Obrigado nós. Mesmo.

Tha sisters are doing Alright disse...

posta eminentemente burguesa.

tadinhos dos ixcluídos, que nunca desembrulharam uma camisa vendida em caixa, uma lata de patê de veado da Harrods...

peçualmente defendo o car-jacking: vendem-se mais carros, sou eletromecânico desempregado: logo: mais trabalho.

Tolan disse...

Belo texto.

zozô disse...

Muito boa análise, Rita. Nós é que agradecemos.

Tolan disse...

Por acaso, no curto prazo, sim, essa é a solução, para mim. Em certos bairros os vizinhos organizaram-se para se defenderem. Caramba, é só um grupo de putos. Acho que uma das coisas mais chocantes porque passamos é ver que nem a polícia nem a justiça nos protegem às vezes, porque vivemos com essa impressão e um dia a nossa loja ou carro é destruído e ninguém nos protege (para não dizer coisas piores). É exactamente pela desagregação de tecidos sociais de vizinhos por exemplo, que se torna possível termos medo de putos, só porque os putos se organizam um pouco pelo twitter. Não que defenda justiça pelas próprias mãos, nada disso, só acho que no caos e nas emergências, as pessoas devem ajudar-se umas às outras e o que se vê muitas vezes é que face a situações de crime, mesmo à luz do dia e em plena cidade, as pessoas fingem que não vêem. Já vi um puto a ser espancado por um gang, no campo grande, eu estava dentro do autocarro, felizmente o chofer saiu e conseguiu separá-los, mas havia uma fila de 50 pessoas e ninguém se mexeu. E eu fiquei a pensar "será que eu me mexia?" É que eram putos só, nem tinham armas nem nada.

fado alexandrino. disse...

O que Rita F. aqui diz (não a parte do medo mas a parte social) está muito bem explicado no filme de Mike Leigh All or Nothing.