quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Pais e mães

Não tenho, na verdade, muito a dizer sobre pais e mães, excepto que agora valorizo mais esta ocupação, porque! Tudo aquilo que os velhotes nos diziam e ao qual não ligávamos nada é absolutamente verdade, posso afiançar. Custa muito, tem-se muito trabalho, "quem tem filhos tem cadilhos" ou lá como é o provérbio (não sei muitos provérbios e erro sempre, mas enfim, agora não me apetece ir ver ao google). Eles fazem birras, chichi na cama, não querem comer nada que lhes pareça minimamente estranho, sendo que o seu conceito de "estranho" abrange coisas da ordem do tomate, passando pela cenoura, salmão e ovos mexidos, perguntam até à exaustão "porque é que eu não posso saltar como o Homem Aranha", choram se lhes explicamos que o Homem Aranha não existe e, se existe, não são eles de certezinha absoluta, tentam levantar-se da mesa mil vezes à hora da refeição porque "mas é que eu agora tenho mesmo de ir fazer cocó" ou "mas é que eu lembrei-me de uma música e queria ir dançar", falam aos berros no meio da rua, fogem e fazem-nos correr atrás deles esbaforidos, qual avó preocupada com os netos na praia da Concelação, saias até ao joelho e água a dar pelas canelas, porque a mais não se atrevem, a desfazer-se em berros "ó Briã, tu sai da água qu'o mar tá bravo e ainda t´acontece uma desgraça", e etc.

 E é também verdade que ter filhos é ascender a todo um mundo novo de felicidade. Sim, isto é verdade, e é a mais importante verdade. Como dizia o Seinfeld, uma pessoa depois de ter filhos está-se a marimbar para o resto - "I can make my own people now!"

Oferece-me, porém, dizer determinadas coisas. Primeiro, a análise de Marx sobre a mulher "duas vezes escrava, dua vezes proletária" é igualmente verdadeira, e isto não tem nada a ver com ser de esquerda ou de direita. Há gente que, mal se profere o nome do Marx, começa logo a benzer-se, ai que vêm aí os comunistas comer-nos as criancinhas, mas isto está errado. Marx faz uma análise da sociedade aguçadíssima e ainda hoje completamente "spot on", como diriam os insulares que têm a mania de que a Europa não é para eles. Mas dizia, a análise está certa, e é válida para todas as mulheres, exceptuando aquelas que vivem num T10 com duas empregadas e uma ama. Para todas aquelas que não desfrutam destas condições, como eu (eu não desfruto, entenda-se), a vida é cumprir com o trabalho, o que dá uma trabalheira horrenda, e depois chegar a casa e ainda tentar que a mesma casa não se torne numa pocilga absoluta. E ainda que os meninos andem arranjadinhos, que pelo menos não pareçam uns indigentes. Pelo menos isso. Vamos manter os padrões da classe média, se faz favor. Mas manter os padrões da classe média obriga a isto, a ser um ás no trabalho e em casa ser igualmente competente. De modo que, sinceramente, a propaganda do trabalho ser muito bom e ser a verdadeira emancipação é converseta que, comigo, não pega. Emancipação, ter de andar numa correria pegada e dar graças a Deus pela creche, senão onde ficariam os pequeninos? Estão a gozar com a minha cara. Todo o mundo, toda a sociedade, toda a criatura que inventou esta propaganda ideológica do "trabalho" está a gozar com a minha cara.

Posto isto. Há ainda uma outra questão "derivada" da parentalidade, que é a das pessoas perderem a cabeça com as criancinhas. A criancinha tosse - médico (e convém que seja privado - a classe média que se preza não gosta do público, ai-que-horror. Temos educação e saúde públicas desde 1974, o que historicamente não é nada, e já estamos prontos a deixar que se enterre tudo cano abaixo. Não deixa de ser curioso). A criancinha levou um pontapé do outro miúdo na escola - quero uma reunião com o director, quero o outro expulso, quero isto e aquilo. A criancinha é insuportável - é criança índigo ou lá o que ditam as New Ages. Estou a exagerar, claro, mas a verdade é que na nossa atitude com as crianças existe igualmente um certo exagero - ou são magnificas, ou são monstros. Raramente são tratadas como elas realmente são, pequeninos seres humanos, adoráveis, que precisam de atenção, de cuidado, de amor, mas fundamentalmente pessoas normais com a sua vidinha pequenina a florescer.

Há uma coisa que me parece imprescindível nas crianças, que as torna efectivamente especiais, e que espero que algumas possam preservar (e agora aproxima-se a lamechice) - a poesia. Tudo o  que é visto pelos olhos de uma criança é novo, original, único. Vêem a beleza das coisas que para nós está escondida sob a opacidade da rotina. Nós vemos tudo cinzento, mas as crianças alegram-se com o azul do céu num dia de sol, com o verde pardacento do mar quando está nublado, com o púrpura laranja do pôr do sol, com os minúsculos malmequeres à beira da estrada, com aqueles insectos feiosos que não são bem joaninhas mas que eles acham que são. E isto, sim, isto é o tipo de coisas que abre os olhos de um adulto "duas vezes escravo, duas vezes proletário" e lhe traz o tipo de alegria que, enfim, nem a literatura consegue dar. Por isso, e para terminar também com literatura, "mas o melhor do mundo são as crianças".

2 comentários:

a.i. disse...

lagriminha.

Eu também agora dou valor às mães porque! :)

O teu último parágrafo, se o texto todo já não fosse maravilhoso, é que é poesia. é mesmo verdade (o que disseste sobre o trabalho, concordo, o meu problema não é ter filhos e trabalhar, que eu gostava era de não ter de trabalhar e ter filhos). a melhor coisa do meu dia é a altura em que o meu filho de 20 meses pega num qualquer objecto de casa que ele por acaso nunca tinha visto e abre muito a boca e os olhos de espanto, e fica ali entretido com aquilo a virar e revirar de pernas para o ar, como se fosse a oitava maravilha do mundo.

Rita F. disse...

Os bebés a experimentar e a descobrir o mundo são maravilhosos. E sim - que privilégio, podermos pelo menos passar a maior parte da infância dos nossos filhos só com eles. Mas o mundo lá fora é implacável.