Senhor Prefeito,
Tenho a honra de chamar a sua atenção para o meu pedido. Trata-se do meu sobrinho Albert Graudens, de nacionalidade francesa, com 16 anos, que foi internado...
Transmitido ao prefeito da polícia:
Solicito da sua benevolência a libertação do meu neto Michael Rubin, de três anos, de mãe francesa, internado em Drancy com a mãe...
Senhor Prefeito,
Ficar-lhe-ia infinitamente grata se anuísse em examinar o caso que venho apresentar-lhe: os meus pais, bastante idosos e doentes, acabam de ser presos na qualidade de judeus, e nós ficámos sozinhas. A minha irmã mais nova chama-se Marie Grosman, de 15 anos 1/2, judia francesa, (...) e eu chamo-me Jeannette Grosman, também judia francesa, de 19 anos, detentora do bilhete de identidade francês...
Senhor Director,
Peço desculpa por me permitir dirigir-me a i, mas eis o meu caso: no dia 16 de Julho de 942, às 4h da madrugada, vieram buscar o meu marido, e como a minha filha estava a chorar, também a levaram.
Ela chama-se Paulette Gothelf, de 14 anos 1/2 de idade, nascida a 19 de Novembro de 1927, em Paris, na 12ª circunscrição, e é francesa..."
Ora, herdar coisas, especialmente memórias e alguma responsabilidade, é
sempre ingrato. O que fazer com a tralha, não é? Sentimos sempre que não
devíamos ser nós a ter de arcar com a complicação que outros nos passaram. Há
papelada a tratar, burocracias a decidir. E nada ilustra melhor esta nossa
contrariedade para com "heranças" do que, precisamente, estes rasgos
de memória que Modiano re-constrói no seu livro e que, como ele diz, nos
pertencem agora, responsabilidade nossa, à nossa guarda.
Mas é tão chato. Da sombra negra que invadiu a Europa nos anos 30 e
perdurou, oferece-nos dizer muito pouco. Não tínhamos nascido, não sabemos. As
próprias pessoas da altura não sabiam (penso que o excerto de "Dora
Bruder" ilustra bem como isso não era verdade - com prisões, internamentos
e deportações a acontecer debaixo dos seus narizes, é claro que sabiam). De
modo que é uma herança que recusamos - as figuras de todas as pessoas que
morreram na altura, crianças, velhos, jovens, famílias. E, como tal, como arcar
com responsabilidade e chatice como se fôssemos homenzinhos não é, realmente, o
nosso forte, continuamos a iludir-nos de que nada é culpa nossa.
Interrogo-me se futuras gerações vão inventar para nós uma qualquer
desculpa como nós inventámos para os europeus da II Guerra. Ah, não sabiam. É
que o problema agora é que sabemos. Há todo um admirável mundo novo de
tecnologia que nos enfia casa adentro pessoas que morrem afogadas a tentar
chegar à Grécia, crianças que levaram com bombas em cima, discursos anormais de
gente anormal, de gente má. Podemos escolher o mal, e escolhemos mesmo.
Portanto, qual será a nossa desculpa?