Há muitos anos, passei um Verão a viajar por todo o lado, tendo o périplo começado num comboio que ia de Santa Apolónia a Hendaia, sendo que aqui, no meio dos Pirinéus, a gente saía (era o "transbordo") e apanhava outro comboio que atravessava a França inteira e desembocava em Paris. Espectacular.
Bom, eu tinha decidido que o melhor era poupar todos os trocos que conseguisse e reservar um lugar normal no comboio, passando a noite a dormir no banco e não naqueles vagões-cama com beliches. Assim como assim, as minhas insónias não se iam deixar abater por beliche alheio, de modo que o banquinho normal estava perfeito, ao pé da janela e tudo, a ver as vistas. Tive sorte com os companheiros de viagem, porque ao pé de mim sentaram-se uns rapazes giros que iam não sei para onde (tenho a vaga ideia de que iam de comboio até à Grécia, mas não me lembro) e um senhor muito querido e simpático, este sim, também com destino a Paris. E o senhor, como é normal, começou a conversar e a contar coisas da vida dele - que toda a vida tinha trabalhado em França mas que agora, já mais velhote, vivia em Portugal para estar perto da filha e dos netos. No entanto, de vez em quando, dava-lhe jeito trabalhar em França, e apanhava o comboio para Paris, suportando assim, ciclicamente, aqueles dois dias de viagem.
Lembro-me de termos chegado a Paris e de nos termos despedido calorosamente e de ele me ter tratado por "Ritinha", dizendo qualquer coisa como "adeus, Ritinha, corra tudo bem, tenha uma boa viagem a partir daqui". E lembro-me de o ver a afastar-se, de boné na cabeça, e a carregar uma mala pesada, daquelas antigas sem rodinhas, daquelas que a Linda de Souza designaria por "mala de cartão".
E lembro-me de ter pensado que, se fosse escritora, pegava naquele senhor e escrevia um livro inteiro a partir do episódio em que o conheci. Nunca consegui.
E hoje em dia penso que, se calhar, nunca consegui porque não há mais nada para dizer. A vida, se calhar, é mesmo só isto, estes pequenos episódios em que conhecemos pessoas e elas, por alguma razão, deixam uma memória. Mas não dá para fazer mais nada com essa memória. Começou e acabou, pronto.
Os Saramagos, os Hemingways deste mundo estão, no fundo, a escrever sobre eles, sobre a tralha que eles carregam e que de alguma forma tem de sair cá para fora. Não escrevem verdadeiramente sobre os outros.
Eu não tenho tralha suficiente para escrever, e isso entristece-me. Ou por outra, tenho, toda a gente tem, mas a minha está lá para o fundo, recusa-se a sair e é como ver uma bola de cotão debaixo da cama, a gente querer lá ir com o aspirador, e o tubo ser curto de mais e ficar a bola de cotão debaixo da cama para sempre, a crescer, cada vez com mais cotão, sem nada nem ninguém que a consiga limpar. Os Saramagos e os Hemingways deste mundo são pessoas higiénicas, ao passo que eu não sou. E isso custa um bocadinho.
O senhor era mesmo querido. Espero que tudo lhe tenha corrido bem. Sinceramente.
4 comentários:
Pronto, já sabemos todos, é Rita :)
Não creio que o que lhe fica seja cotão. É deep? melhor. Experiência. E não somos todos Saramagos nem Hemingways, arrisco que não o desejamos:). Como as aves não são todas andorinhas e rouxinóis e nem por isso alguma delas deixa de o ser. Escrever é ser ator. Uma necessidade de metamorfose que se consegue no mundo de papel e lápis. E o mundo tem mais gente.
Boa semana
É verdade, eu não desejo propriamente ser Saramago ou Hemingway (este último, não desejo de certeza; tenho alergia a espingardas e armas em geral, que magoam).
Não quero ser Saramago nem Hemingway, mas não me importava era de ter o talento deles. Isso é que não me fazia espécie nenhuma. Até suportava bem o cotão. :D
Olá! Há uns meses que leio intermitentemente, ou melhor, passo por aqui e leio coisas antigas, como esta, que só li domingo passado.
Ficou-me cá "a cismar" e achei que devia comentar. Tarde, bem sei, e espero que tenhas aquelas notificações que te avisam de comentários. Eu vou subscrever, caso respondas ou não.
Ora bem, já vi que falas muito de literatura, e sinto um certo desgosto de "não ser escritora". Por isso tive de comentar este post.
Quando dizes "E lembro-me de ter pensado que, se fosse escritora, pegava naquele senhor e escrevia um livro inteiro a partir do episódio em que o conheci.", porquê?... Porque é que aquela história, a da mala de cartão, te havia de inspirar? Se calhar não te inspira, é por isso que a história não surge. Não estamos falar de escrever uma reportagem, isso é outra conversa e é um trabalho *profissional*, mas de ficção.
Para se ser escritor é preciso, acima de tudo, ter uma história para contar. (É curioso como tanta gente se esquece disto.) Se é boa, se é má, se interessa a alguém, isso é outra questão. Quer em conto ou romance, o escritor precisa primeiro que tudo de ter uma história para contar (original, de preferência), ou de várias histórias, ou de várias versões da mesma história (como é mais comum). Se a conta bem, se a conta mal, isso é uma questão de estilo, talento, prática.
Isto tudo para dizer que se calhar a história do emigrante do comboio não é a história que queres contar. Pelo que leio aqui já percebi que tens talento suficiente para escrever, porque efectivamente escreves e escreves bem. Cada vez que aqui escreves deixas uma história. Aquela que te apetece contar. É caso para perguntar, no campo da ficção, qual é a história que queres contar? Que queres *realmente* contar? E que se calhar não contas porque achas que não interessa?...
Aqui, no blog, já és escritora. E é curioso como as pessoas também se lembram tão pouco que pouca gente tem blogs, onde escreve, e onde escreve algo de interesse, como o teu. (Nem sempre concordo com o que dizes mas também essa é outra questão.)
Há mais de vinte anos que ando a tentar contar uma história, por isso sei do que falo. Já tentei diversas vezes e só não está publicada porque acho que ainda não está suficientemente bem contada (ou é o que digo a mim própria, não sei). Conheço os preconceitos com que nos enchem a cabeça, que um bom escritor é fulano e sicrano e nem devemos pensar nisso que nos faz mal. O que nos faz mal é a falta de auto-estima.
Por isso deixo este post de incentivo, como costumo incentivar muita gente que quer escrever e parece que tem medo. Isso fez (e faz) muito mal à nossa literatura. Já era tempo de acabar com isso.
Pelos temas que abordas aqui não sei se ia gostar dos temas abordados na tua ficção, se fossem os mesmos (sou muito sincera), mas o que eu gosto pessoalmente não é relevante para este comentário. Por exemplo, não me interessa nada a história do homem da mala de cartão. Farta estou eu de histórias do homem da mala de cartão. :P
O que é relevante é o incentivo, que fica feito.
Boa sorte!
Correcção:
"Ora bem, já vi que falas muito de literatura, e sinto em ti um certo desgosto de "não ser escritora". Por isso tive de comentar este post."
Sem "em ti" dava ideia que o desgosto era meu. :P
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