A BBC está a transmitir um programa muito interessante sobre os espiões da actualidade no Reino Unido. Dão conta das dificuldades da profissão mas também da forma como, muitas vezes, a espionagem comete erros fatais e desrespeita a privacidade, e até a vida, de pessoas que são perfeitamente inocentes (mais ou menos como, nos aeroportos, escolher um óbvio muçulmano para revistar a bagagem "ao acaso", ou, há umas décadas, irlandeses. Por acaso, tenho uma amiga de Belfast que me disse que isso lhe estava sempre a acontecer, mas cá para mim o facto de ela ser giríssima, alta, olhos verdes e cabelo preto - perdão: "asa de corvo", para dar qualidade literária ao verbo - contribuía mais para o apetite das alfândegas do que outra coisa. Mas continuando).
Ora, é evidente que um programa sobre espionagem realizado no Reino Unido tinha de, mais tarde ou mais cedo, mencionar, ainda que por alto, o IRA. Ah e tal, o IRA representa ainda um problema muito grande "no que concerne" ao terrorismo, com tendência para fazer explodir coisas, disse há pouco um espião (assim todo tapado, não se vê a cara e a voz é de um actor). Justiça seja feita à BBC, que se preocupou mais em perceber se estes espiões eram espúrios nas violações de privacidade que cometiam ou se tinham alguma razão que se justificasse. Muitas vezes, tinham. Outras vezes, não tinham.
Da Irlanda do Norte, não se falou mais. Ou seja, o incauto, ou distraído, espectador confirma apenas aquela ideia repetida e banal de que terrorismo na Irlanda do Norte é IRA (e longe de mim vir aqui dizer que não é verdade. Como todas as verdades, esta é contada de uma forma, digamos que, peculiar. Digamos que, parcial).
Tive muita pena, principalmente porque estou a assistir um programa feito por britânicos e que passa na Grã-Bretanha, que não se tenha referido o problema do terrorismo causado pelas UVFs, as forças paramilitares unionistas, que, mais uma vez "no que concerne" a matar gente, são tão prolíferos como o IRA. Se por acaso estou enganada e não são, é apenas porque não conseguem. Pelos vistos, os espiões britânicos preocupam-se com o grande potencial terrorista do IRA, mas parece que a UVF já foi apaziguada, e dali já nada há a recear. Está benzinho. Posso apenas esperar e desejar que tenham razão, pois, como diziam os Gato Fedorento, "eles lá dentro sabem", ao passo que eu só sei que nada sei.
Queria rematar com uma coisa que li escrita por um linguista de que gosto muito, Norman Fairclough, e que escreve bastante sobre a forma como o uso da linguagem é uma subtil, poderosíssima forma de dominação, que determina como vemos o mundo e, ainda mais importante, o nosso papel nesse mundo. E Fairclough diz qualquer coisa como "nós chamamos-lhes terroristas, e para outros eles são 'freedom fighters'" (a ideia é esta, não estou a citar palavra por palavra). Será isto apenas uma questão de nomes, de mera designação linguístca? Não. São visões diferentes do mesmo mundo - e, por essa razão, realidades absolutamente diferentes do mesmo mundo. Paradoxalmente.
E por isto é que ninguém se entende. É como diz o Eça, "o latim é a base, é a basezinha". Quando falamos latins diferentes, vivemos em mundos diferentes. Falta-nos o verbo, a basezinha, e falta-nos tudo.
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