Estou a ler "Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres", de Clarice Lispector. Adoro o nome - Clarice Lispector. Acho que foi este nome enrolado e elegante que me fez ter vontade de a ler. Estou a gostar relativamente. É indubitavelmente um livro bem escrito, e elegante como o nome da autora. O estilo sentencioso não ofende, e de alguma forma faz lembrar a Agustina (a mim, faz, pelo menos), porque a meio do texto deparamo-nos com uma daquelas verdades bem urdidas, bem explanadas, bem escritas, para não conseguirmos duvidar delas. Boa técnica, sim senhora.
Mas não é exactamente sobre o estilo (que o tem) de Clarice Lispector que quero falar. Ontem à noite, foi esta frase que me deteve: 'De Ulisses ela aprendera a coragem de ter fé - muita coragem, fé em quê? Na própria fé, que a fé pode ser um grande susto, pode significar cair no abismo'.
Esta questão da "coragem de ter fé" deu-me (dá-me) muito em que pensar. De facto, parece-me que é preciso coragem para ter fé. Eu nunca tive grande fé em nada, continuo a não ter, e sempre atribuí isto a um certo temperamento (certas pessoas não são propensas à vontade de acreditar, não têm essa vontade) e, por outro lado, a uma certa cobardiazeca. Custa ter fé, porque é preciso dedicação, confiança ilimitada naquilo em que se tem fé, vontade de abandonar o racional e conseguir abraçar esse mundo de escuridão irracional de onde vem a fé. E lembro-me das eternas explicações que me davam em criança - ter fé é acreditar e pronto. É sentir que é assim.
Eu nunca fui capaz de sentir que nada é assim ou assado, e nunca fiz disto uma questão de dúvida metódica, um exercício intelectual, ou uma demanda de uma racionalidade na fé. Simplesmente sou incapaz de ter fé, porque essa vontade de acreditar é sempre combatida e deitada abaixo por um pessimismo crónico, que duvida de tudo, que evita a desilusão. Quem tem fé e depois descobre que está errado arrisca-se a desilusões fortíssimas, existenciais, cai no abismo, como diz a Clarice, e eu não quero, nem nunca quis, passar por isso, não tenho uma força espiritual deste tipo. De modo que rejeito instintivamente a fé de uma forma errada - não se deve rejeitar nada porque não queremos arriscar a perda e a desilusão. Daí eu perceber a Clarice quando fala na "coragem de ter fé". Eu não tenho essa coragem e, tristemente, penso que não a quero ter.
E porém. Há alturas em que não ter fé me consola, principalmente quando me confronto com aquilo em que os outros acreditam e em que eu não acredito, tipo Fátima ou isso. Não gostaria de acreditar no milagre de Fátima, da mesma forma que as pessoas que acreditam provavelmente gostam de o fazer. Neste caso, o não ter fé é para mim uma consolação, num mecanismo de facto muito semelhante ao das pessoas que têm efectivamente fé. Giro. O Fernando Pessoa não dizia que "não haver deuses é um deus também?". Pois é. Pois é, pois é.
Obrigada pela atençãozinha e boa continuação.
1 comentário:
Clarice já é difícil de se entender. Agora veio você com esse texto e me deixou confusa....rsrs
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