terça-feira, 29 de novembro de 2011

Perder em grande

Cartier-Bresson fala do momento decisivo, aquele que se consegue capturar na fotografia e que depois desaparece para sempre. O que resta é a memória, e a fotografia. Como dizia o robot louro e melancólico naquela cena final do Blade Runner, "all those moments will be lost in time like tears in the rain. Time to die".
Isto é coisa da pesada, realmente, e que bonito que é, ao mesmo tempo.
Não me irrita propriamente, mas há qualquer coisa que sinto amargurar quando penso nisto, nestes momentos perdidos. Porque Cartier-Bresson, ao falar do momento decisivo, sabe também que a fotografia é uma pobre reminiscência desse momento, como sentir um cheiro qualquer que nos é familiar e que teima em afastar-se, e nós a abrir as narinas desesperadamente, a farejar que nem cãezinhos, a tentar reencontrar o odor. 
E nunca conseguimos recuperá-lo totalmente. Daí eu concordar sempre, cada vez mais, com o Woody Allen - não temos memórias, perdemos memórias. Ou por outra, a memória é apenas um farrapo do que perdemos. 
Perdemos sempre tanto. 
A vida é lixada - até os momentos em que pensamos que estamos a ganhar são, no fundo, momentos perdidos.
Olha, time to die, como dizia o outro. Mas que esse dia esteja longe, que até lá ainda há muito a perder, e eu faço questão de perder em grande. 

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Emparedados

Eu gosto de diferenças, e à partida penso que é relativamente fácil reconhecer que as diferenças são saudáveis, engraçadas, fazem-nos aprender, descobrir coisas novas, etc e etc. Continuasse eu a frase e isto ficava um manual da escola, Estudos do Meio e assimetrias regionais.
E, de facto, é um bocadinho de assimetria regional que se fala quando pensamos, por exemplo, no caso de Belfast, cidade que tem gente tão diferente, tão diferente que sente até a necessidade de viver em bairros diferentes, ir a escolas diferentes, apoiar equipas de futebol (e até desportos) inteiramente diferentes, falar inglês de forma diferente, passear-se por zonas da cidade diferentes, brandir bandeiras diferentes, professar religiões diferentes, ter empregos diferentes, cobrir paredes com grafittis diferentes, a parte católica bem mais agradável, aliás, do que a protestante ou "loyalista" - a primeira poemas e arco-íris na parede, a segunda UVFs e homens de balaclava empunhando metralhadoras. Muitíssimo acolhedor. 
No fundo, as pessoas de Belfast embirram um bocado com a diferença, daí preferirem a companhia daqueles que, em sua opinião, são semelhantes. Apesar dos esforços, tanto quanto sei bastante reforçados, de integrar nas forças policiais números equivalentes de católicos e protestantes, o pessoal continua a preferir ir directamente aos paramilitares para resolver os assuntozitos porque, afinal, nada existe que uma bulha não resolva. 
Porém, o impacto mais forte que a recusa da diferença provocou em mim não foi exactamente em Belfast, mas antes em Nicósia, essa remota capital do Chipre de que quase nunca se ouve falar, que ostenta (muito pouco orgulhosamente, como será óbvio) o título da última capital dividida da Europa. A gente vai a andar na rua muito bem, loja aqui, loja ali, pessoas atarefadas, e de repente embate contra um muro, quase do nada. Vê um arame farpado, um soldado a fazer a ronda (o soldado que eu vi até tinha cabelo comprido e brinco na orelha - devia ser para amenizar a coisa), e é assim, para o outro lado já não se passa. Quer dizer, passar até passa, há uns anos que é possível, é preciso é estar na disposição de mostrar passaporte, passar por controlo de segurança e quejandos. Também se pode subir ao último andar de um centro comercial lá por perto, com uma vista soberba para as montanhas do Chipre, e contemplar a grande bandeira turca cravada no topo das montanhas, na parte ocupada da ilha, a reclamar território bem reclamadinho.
Graças ao facebook, descobri este movimento, semelhante, de alguma forma, ao Occupy de Londres e de Wall Street, em que, pacificamente, uma série de gente passa as noites ao pé do muro na esperança de um Chipre unido. Não um Chipre semelhante - um Chipre em que toda a gente é diferente, mas toda a gente deixa os outros em paz. 
Os muros são, efectivamente, coisas muito primárias, se formos a ver bem. Coisas medievais, que não vêm de nenhum lado sem ser do medo. Quem não deve, não teme, e não precisa de muros para nada. 
Bom. Acabemos com os muros, é o que tenho a dizer hoje. 

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

A iluminação da classe média

Há um filme, o Anónimo, recém estreado em Portugal (não vi) que, ao que parece, defende a tese, já muito discutida no passado, de que Shakespeare não foi o verdadeiro autor das peças, mas antes um aristocrata qualquer. Dizem alguns que seria até a Rainha, a Isabel I, a autora das obras (esclarecendo-se assim o controverso homoerotismo dos sonetos - ai, que conveniente). 
Eu percebo a perplexidade. Como é possível que um da arraia miúda, nem sequer exactamente um burguês, uma espécie de povo um bocadinho mais nutrido, educado em escola pública, tenha escrito a grandiosidade literária que é a obra de Shakespeare. É impossível. Um Hamlet, especialmente um Hamlet escrito no século XVII, é coisa de majestade.
E é mesmo. De modo que eu acredito que tenha sido a Rainha a escrever o Hamlet e o Measure for Measure - pelo menos estes dois. As outras peças, enfim, qualquer um podia ter escrito, desde que soubesse Grego ou Latim, que por acaso o Shakespeare aprendeu na escola. Que educação tão precária.
O talento, quando nasce, não é como o sol, porque é só para alguns. E, tal como a justiça, também é ceguinho. Não quer saber se a pessoa tem ou não dinheiro para comprar o que lhe fica bem. 
E isto é uma coisa muito difícil de aceitar. Cada um com a sua cruz, não é.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Das místicas e da falta delas

O filósofo J.L. Austin apontou uma situação muito pertinente (isto quanto a mim) no seu How To Do Things With Words: muitas vezes, mudamos a nossa vida com a linguagem, porque agir com a língua que se fala é tão ou mais importante do que agir fisicamente. 
Isto para dizer que hoje abri a caixa do correio e estava lá uma revista chamada "Mística". Achei estranhíssimo, e que no mínimo o pessoal ensandecido do New Age me andava a perseguir, sabe-se lá porquê. Mas como é que esta gente descobriu a minha morada?!, pensei eu.
Acontece que descobri, após um olhar mais minucioso à revista, que se tratava da Mística, sim, mas do Benfica. Era a revista do Benfica, não o pessoal ensandecido do New Age, crianças índigo e hortelã pimenta e isso. 
Havia ali qualquer coisa naquela situação que pedia mudança, transformação. Senti que, seguindo o pensamento de Austin, eu deveria ter tido qualquer reacção verbal que instituisse um novo estado de coisas - ah, que o meu dia melhorou tanto, ah que vou ler a revista de uma ponta à outra, ah, que a mística da revista vai transferir-se para a minha pessoa, que tão precisada dela (da mística, leia-se) está. 
Mas não. Eu não disse nada porque a minha vida continuou igual. A revista permanceu na caixa do correio, já que eu estava muito carregada e não me apeteceu ter de arranjar um dedinho onde ela se pudesse encaixar.
Os benfiquistas acham que o Benfica muda a vida deles, só por cantarem o hino. Eu não. Talvez não seja benfiquista pura. 
Reservo o poder da linguagem assim para outras situações. É que é muito difícil deixar a mística entrar na nossa vida. 
Mas força, Benfica. 

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Coisa que não compreendo: "pedimos desculpa pelo incómodo"

Normalmente, costumo considerar que pedir desculpa pelo incómodo é muito agradavelzinho, muito composto. Mas tenho reparado que pedir desculpa pelo incómodo não passa de um estratégia amenizadora para justificar algo que não tem justificação nenhuma, tornando-se numa frase críptica que precisa de ser decifrada, querendo significar sabe-se lá que extraordinário inconveniência. E deste modo o "pedimos desculpa pelo incómodo" tem muitas traduções possíveis.
"Multibanco avariado. Pedimos desculpa pelo incómodo" - tradução: não estamos para pagar multibanco, portanto traga dinheiro. 
"Se desejar recibo, por favor dirija-se à loja. Pedimos desculpa pelo incómodo" - tradução: queremos muito que não nos peça recibo para pormos dinheiro ao bolso, portanto vamos complicar-lhe a vida o mais possível. Isto aconteceu-me numa porcaria de uma bomba Galp (a empresa que mais detesto em Portugal nem é a Emel, é mesmo a Galp) - a bomba estava em pré-pagamento, de modo que a pessoa tinha de ir pagar, voltar à bomba e abastecer, e depois voltar à loja para pedir recibo. Tive vontade de partir tudo. Comecei a resmungar, o mais educadamente que consegui, com a senhora que lá estava, mas coitada, o que é que ela tinha a ver com aquilo. 
"Casa de banho avariada. Pedimos desculpa pelo incómodo" - tradução: não estamos para andar sempre a limpar a casa-de-banho e o xixi e cocó dos outros. Vá fazer à esquina ou aguente até chegar a casa.
"A impressora não tem toner. Pedimos desculpa pelo incómodo" - tradução: ficámos sem tinteiro há que tempos e nunca tivemos para o trocar. Mais uma vez, aconteceu-me a mim nos Correios, mais do que uma vez (tinha de autenticar uns documentos, ando sempre imersa em burocracia). Continuando, da segunda vez, tive de dizer ao senhor que tinha de arranjar maneira de pôr a impressora a funcionar. Dois minutos depois e afinal já havia o chamado toner ("ah, está mesmo no fim, a senhora está com sorte!").
É expressão que me irrita sempre. De cada vez que alguém "pede desculpa pelo incómodo", já se sabe que o mesmo incómodo vai ultrapassar em muito qualquer laivo de razoabilidade. Mas lá estão as pessoas a insistir no pedir desculpa pelo incómodo não por boa educação (a boa educaçãozinha é sempre bem-vinda, e nós, queridos portugueses, gostamos muito de rematar a frase com expressões compostinhas como esta), mas sim como uma justificação para a parvoíce irrazoável.
A sério. 
Este post destila fel. Peço desculpa pelo incómodo.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Mas se eles queriam todos ser o Kurt Cobain

A BBC passou, na semana passada, uma série de programas sobre o grunge e os Nirvana. Por coincidência, foi a mesma semana em que vi o excelente documentário de Cameron Crowe sobre os Pearl Jam, 20. 
A primeira vez que ouvi Nirvana foi com o omnipresente Smells Like Teen Spirit, e fiquei abismada com aquilo. Por um lado, achei horrendo e o Kurt Cobain o homem mais feio que já alguma vez vira. Qual era a ideia de não pentear o cabelo, ainda por cima quando se era louro? Não percebi. Por outro lado, acho que tudo aquilo me fascinou.Nunca tinha ouvido nada assim. Ainda hoje gosto de ouvir Nirvana (embora sem pretensões de ser uma grande fã, porque nunca fui), portanto acho efectivamente que a distorção das guitarras e a voz roufenha do Kurt me fascinaram mesmo - e aquele suspiro quando canta Where Did You Sleep Last Night (aqui, minuto 3:58) ainda hoje me mata. Acho que este homem era um grande intérprete, de facto. 
O documentário que vi relatava as últimas 48 horas de Kurt Cobain (há em DVD, capinha aqui ao lado) e discutia aquilo que, segundo sei, já muito se discutiu anteriormente sobre Cobain - que era atormentado pela fama; que, se por um lado queria fazer dinheiro, por outro vivia esmagado sob o peso da fortuna e da opulência com que subitamente fora bafejado; que lidava malíssimo com o facto de se ter tornado uma figura de culto e de ter gente que o adulava, que o "seguia"; que de alguma forma sentia que a fama e o sucesso não eram merecidos (e mostra-se imediatamente uma entrevista em que Cobain diz que havia, na altura, dezenas de bandas muito melhores do que os Nirvana que mereciam ter alcançado o sucesso destes últimos; há igualmente depoimentos de uma série de pessoas da cena musical de Seattle, antes desta se ter tornado mundialmente popular e toda fixe, a dizer que, enquanto os Mother Love Bone, antecessores dos Pearl Jam, haviam sempre gozado de grande popularidade, os Nirvana eram os parentes pobres da altura, perdedores em todos os aspectos; até há alguém que diz algo como "até para Seattle eles eram uns falhados"). 
E porém. A história que se segue é bem conhecida - sucesso e vendas retumbantes, suicídio e miríades de explicações que se seguiram depois da morte de Kurt Cobain, da paranóia (foi assassínio, mas é!), à solidária (coitado, tinha problemas de estômago e era um grande viciado), passando pela idólatra (ah, que sensível, que profeta atormentado, a fama foi demais para ele, as grandes almas são assim, não são para este mundo).
E porém. Kurt Cobain conseguiu fama e dinheiro. Sucesso propriamente dito, talvez não. E conseguiu fama e dinheiro porque merecia, ou porque teve sorte, porque a MTV decidiu passar o Smells Like Teen Spirit vezes sem conta? Uma colega minha da faculdade, daquelas parvas irredutíveis, dizia que não percebia o apelo dos Nirvana, já que o Cobain cantava mal e era muito "imperfeito" a tocar guitarra. Para mim, a falta de técnica de alguém não significa que não tenha talento (a Celine Dion é muito perfeita a cantar e não tem pinga de talento, por exemplo). Eu, por acaso, acho que Kurt Cobain era talentoso. Outros dizem que não, que teve apenas sorte e que, para voltar a Smells Like Teen Spirit, esta canção não passa de um riff do More Than a Feeling dos Boston, apenas mais acelerado e com mais distorção. 
Aquilo que eu queria verdadeiramente dizer, e que por alguma razão anda aqui aos solavancos, é que Kurt Cobain é apenas um exemplo de uma questão maior, mais "abrangente" (que palavra cómica, eh eh)  - o que é, verdadeiramente, o talento? Truman Capote, como sempre soberbamente consciente de que esta qualidade era algo que ele tinha em abundância, descreve o talento como um chicote que fustiga as pessoas talentosas permanentemente, sempre à procura de mais e melhor. Foi este chicote que levou Cobain ao suicídio? É que acredito que, efectivamente, o talento e as suas consequências possam ser tão avassaladoras que acabem por redundar em destruição (e a História mostra-nos uma data de exemplos disto). Por outro lado, é também certo que o "talento" é difícil de identificar, e muitas vezes confundido com campanhas publicitárias audaciosas, marketing manipulador, fogo de vista, espectáculos para encher o olho, atitudes, roupas, cabelos, entrevistas cuidadosamente estudadas e planeadas, etc. - e a atitude blasé, de recusa de qualquer coisa, dos Nirvana e do grunge em geral, que me atraía na altura e continua a atrair, pode talvez não passar disso. Eu sempre vi ali qualquer coisa de genuíno, tal como hordas de outras pessoas, mas talvez tudo isto de que falo seja tão genuíno como a Jennifer Lopez (que, coitada, já avisou as pessoas de que é apenas a Jenny from the block, genuinazinha de morrer). 
Mas enfim, não tenho resposta nem mais nada a dizer, a não ser que, ontem tal como hoje, se eles queriam todos ser o Kurt Cobain, juntar-me ao grunge era a mais lógica solução (frase sábia, esta, que devia vir entre aspas, pois obviamente não é minha. Mas aspas são feias e já usei muitas neste texto). E nunca me arrependi.


quarta-feira, 2 de novembro de 2011

A língua que não é doce como o mel

Is our language a function of our British cynicism, tolerance, resistance to false emotion, humour, and so on, or do those qualities come extrinsically - extrinsically - from the language itself? It's a chicken and egg problem.

Pois é. O grande Stephen Fry tem, como sempre, razão quando fala destas coisas da língua e da linguagem. Uma vez, na Expo92 (pois é... eu  sou uma pessoa assim velha), veio um indivíduo perguntar-nos, a mim e ao grupo de amigos com quem eu estava, de onde éramos. Respondemos de Portugal, ao que ele retorquiu "o vosso idioma é doce como o mel". Lembro-me de na altura ter pensado que, ou ele queria ser extremamente simpático por qualquer motivo, ou devia apenas conhecer o português do Brasil. Não consigo conceber ninguém a ouvir português europeu e considerá-lo "doce". Tem muitas outras qualidades, mas doce, melodioso, fofinho, não é. 
O português é duro, de ângulos agudos daqueles que o Cesário Verde gostava, ríspido, fechado, desconfiado, pouco simpático. A língua é assim porque nós somos assim? 
E, quanto a mim, o português também é carismático, expressivo, forte, gracioso e com piada. E seremos nós assim também? Ou calha a nossa língua ser assim, sem nada a ver connosco?
O signo linguístico é arbitrário, já dizia Saussure. De alguma forma, isto responde à questão. E porém, acaba por não responder. Se a linguagem é uma faculdade mental, então as nossas qualidades estão na língua que falamos. E se existe um imaginário colectivo, um país que partilha uma memória, um território, uma história, etc., então a língua também faz parte dessa partilha.
Conclusão: o português (europeu, reitero) não é doce como o mel porque os portugueses também não são. O português é antipático porque os portugueses também são. Mas o português tem piada e graça porque os portugueses também têm. E a língua é uma coisa que a crise ainda não afectou. É lixado não ter subsídio de Natal, mas a minha língua ainda é o português. Serve para alguma coisa, ou vai servindo. Para consolar.