sexta-feira, 27 de setembro de 2013

A questão que Stringer Bell levanta (SPOILERS)

Stringer Bell é uma personagem do The Wire, um criminoso de rua muito cruel e muito mau que ganha rios de dinheiro a vender droga, juntamente com o seu companheiro de rua e irmão de vida Avon Barksdale. Bom. A uma certa altura, Stringer decide que quer uma vida mais legítima, isto é, transformar o dinheiro ilegal que tem num negócio que lhe continue a dar dinheiro, mas que seja legal aos olhos da sociedade. Ele, Stringer, não se torna numa pessoa melhor, o seu coração não adocica, nem reconhece a ordem social - apenas considera que tem mais a ganhar se deixar de vender droga nas esquinas. Vai daí, enceta esforços para se tornar um magnata do "real estate", o que implica subornar gente de toda a espécie, mormente políticos, que têm a particularidade de serem ainda mais corruptos do que ele. E o pobre Stringer iludido, a pensar que não havia ninguém mais empedernido do que um homem como ele, que construiu o seu império nas esquinas de droga dos guettos de Baltimore...pobre coitado.
Passa-se, então, que Stringer Bell gasta rios de dinheiro a tentar legitimar o seu negócio, dá dinheiro a um senador que o esmifra e ainda se ri dele, e não consegue, de forma nenhuma, ultrapassar o estádio em que está - vendedor de droga do guetto. O seu amigo Avon, que sempre recusou ultrapassar a sua condição e ser qualquer outra coisa que um 'soldado das ruas', diz-lhe qualquer coisa como "they saw your ghetto ass coming miles away", e Stringer Bell responde com fúria.
Quando Stringer morre, o detective que passa a série toda atrás dele, McNulty, passa-lhe revista à casa e depara-se com um apartamento lindo, organizado, com um pequena biblioteca onde figura Wealth of Nations, de Adam Smith (anteriormente na série, mostrara-se Stringer Bell a ter aulas de economia à noite). E interroga-se McNulty - quem é que eu andei verdadeiramente a perseguir estes anos todos?
E interrogo-me eu - o que nos demonstra a história de Stringer Bell? Demonstra-nos que a vida (sim, eu sei que é uma série de televisão, mas pronto) não é assim tão diferente dos romances naturalistas em que as personagens são afundadas pela força da sociedade. Stringer Bell, à sua maneira, tenta aperfeiçoar-se e não consegue - o peso da sociedade, ainda pior do que ele, mais corrupta, mais dura, cai-lhe em cima e ele morre na derrocada. E enfim, com a vida como está, com esta crise toda, que é moral e social ainda mais do que financeira (e aqui reside, penso eu, o verdadeiro perigo da crise), não posso deixar de pensar que Stringer Bell quer dizer muita coisa. Quer dizer que a chamada "mobilidade social" deixou de existir, se alguma vez existiu. Quer dizer que é cada vez mais difícil melhorar, ultrapassar a nossa condição. É verdade que podemos não o querer fazer, mas também é verdade que podemos querer ser mais, viver mais, e não conseguir, porque há muito contra nós.
Mas enfim, talvez seja apenas o meu conservadorismo a falar. Espero bem estar profundamente errada, e além disso também já não tenho mais tempo para escrever mais, de modo que fica assim.
Adenda: descobri este artigo giro, quanto a mim de interesse para quem gosta do The Wire.

'Death Comes to Pemberley', de PD James - um pequeno apontamento.

Bom. Já escrevi que gosto muito de PD James e dos seus livros entusiasmantes, e que aprecio a forma como ela respeita as suas personagens, aprofundado-lhes a psicologia, coisa que nem sempre acontece nos romances policiais. A PD decidiu, em 2011, escrever uma sequela a Pride and Prejudice, de Jane Austen, já que é grande admiradora desta escritora, e até aqui tudo bem. A premissa é, então, a de que acontece um grande e horrível crime em Pemberley, o casarão de Mr Darcy e Elizabeth, já depois destes se terem casado e viverem em felicidade matrimonial.
Antes de ler o livro, o receio que tinha era que este 'Death Comes to Pemberley' resultasse num esforço de imitação algo desajeitado. Depois de ler o livro, posso confirmar que resulta num esforço de imitação algo desajeitado. Nada a apontar ao enredo - a PD tece uma trama excelente, um crime enredado, e a gente entretém-se a ler. O estilo de escrita é que é difícil de digerir - um inglês propositadamente formal, de vocabulário propositadamente antiquado, formas de tratamento propositadamente rebuscadas (a palavra-chave, aqui, é "propositadamente", só para que fique claro; é que, quando a escrita nos parece propositada, estamos perante um mero exercício de estilo sem grande criatividade, que é o que se passa com este livro). A PD quer, como se compreende, tentar escrever como a Jane Austen para dar um tom realista ao livro, já que não faz sentido que o Mr Darcy e a Lizzie falem com um casalinho que vai ao centro comercial comprar um plasma. No entanto, o problema é que a PD não é a Jane Austen, e isso, tristemente, nota-se. De modo que toda a escrita é um esforço demasiado, quase absurdo, e é pena, porque acaba por estragar o resto.
A mimesis, dizia Aristóteles, é mais do que imitação, é representação (e, logo, criatividade também). Mas eu acho que a PD, com este livro, esqueceu-se ligeiramente deste conceito e ficou-se apenas pela imitação que, como todos sabemos, não aproveita a ninguém. Mas hei-de continuar a ler tudo o que escreve, e nota apenas para dizer que tenho curiosidade em saber como ficou a tradução portuguesa, nomeadamente se mantém este ar forçado, encafuado, do original - se alguém tiver lido, comentariozinho, assim o ajude engenho e arte. Obrigada e até a uma próxima. 

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Before Midnight - pequeno comentário (SPOILERS)

Vi, finalmente, o Before Midnight, com grande entusiasmo, muito contente por saber que o Jesse e a Celine se tinham casado e tinham tido bebés e tudo (aleluia!). Bom. Na verdade, este post é um bocado supérfluo porque concorda com a maior parte das observações que vi escritas sobre o filme na imprensa - nada mal, um retrato quase fiel, algo desiludido, do desgaste do casamento, e etc. e tal. Sim, penso que é isso. Exageraram em certas coisas, penso eu - a Celine tornou-se numa louca desvairada, por exemplo (basta dizer que passa seis semanas numa Grécia eternamente deslumbrante e diz que nunca lá queria ter ido. Louca insana). Quando o marido lhe diz que ela é uma grande doida e que, se não fosse ele, não encontrava ninguém que a aturasse por mais de 6 meses, penso que tem uma certa razão. Por outro lado, Jesse, menos ideal, mais feio, mais magro, mais mal vestido, mais quarentão, é um retrato honesto do envelhecimento, do chegar àquela tal idade dos quarenta, que é tão complicada, assustadora (ouço eu dizer, porque felizmente ainda não sei, ah, ah, ah). A quase confissão de infidelidade, de ter enganado a Celine uma noite quando andava ocupado a fazer promoção ao livro, é triste, mas parece-me realista, e a posição da mesma Celine, que lhe diz que para ele é fácil falar quando é ela que organiza tudo em casa, as filhas e etc., faz todo o sentido. Parece um rol interminável de queixas, mas não deixam de ser verdadeiras, e portanto é preciso saber o que fazer. Eles, Jesse e Celine, ainda estão a descobrir. 
Não gostei do cinismo todo que o filme lança sobre o casamento, aquelas conversas parvas a desvalorizar o amor, e que o amor não sobrevive como as pessoas pensam, e que a amizade é tão mais importante, e que ao fim de x anos as pessoas já não se podem ver à frente, ou até podem mas têm de ser muito independentes, e isto e aquilo. Aquele senhor velhote que era dono do hotel onde eles estavam irritou-me imenso com esta conversa, por exemplo. Que homem irritante, cuja única coisa que tem a dizer sobre a mulher falecida é "eu ainda aqui estou, e ela não". Olhe, que bom para si. Se o casamento é assim tão mau para vocês, parem de falar e divorciem-se, mas não assumam que a vossa experiência triste é igual para toda a gente. 
No entanto, o final do filme é optimista, o que de certa forma desmente este cinismo insuportável. E sim, há desgaste, mas lidar com o desgaste faz parte de querer, ou não, continuar um casamento (uma união, o que seja). E o filme mostra que é possível ultrapassar dificuldades interpessoais se a pessoa estiver disposta a muita ginástica.
Eu, que preciso imenso de ginástica e de emagrecer uns dez quilos (é um facto científico), estou mais do que pronta, portanto gostei do filme. Fim. 

Coisa que não compreendo: "trata"

Não é que não compreenda o "trata"; o que não compreendo é porque é que eu sou a única pessoa que tem de apertar a cara para não rir quando vê um carro a circular com o aviso "trata - número de telemóvel qualquer". Às vezes, não é só em carros, também é em terrenos - "trata", seguido de número de telefone. E casas, também - "trata". E motas - "trata". E lojas vazias - "trata".
Passei décadas sem perceber isto. Mas porque é que as pessoas não escrevem "vende-se", que é mais explícito e com certeza cumpre melhor o objectivo delas, que é efectivamente vender qualquer coisa? Porquê o "trata"? Trata de quê? Se eu puser "trata" no carro, quer dizer que sou mecânico, que trato de carros? Se puser "trata" num terreno, quer dizer que sou guarda-florestal e dou uma perninha como empreteiro e tipo, trato da casa e do jardim? Trata o quê?
E pensei nisto e pensei nisto e voltei a pensar, e gostava de pensar nisto, porque me fazia rir, mas sempre sem perceber (não podia ir ver à wikipedia porque nessa altura não existia internet). Até que comentei a temática com alguém mais esperto que me informou que, por razões legais, os particulares (isto é, os cidadãos particulares) não podem andar por aí a expor sinais de "vende-se" ao Deus-dará. Não, não. Tem de ser "trata", de "trato próprio", ser o próprio a tratar e isso. E isto de facto faz sentido, porque lembro-me de, durante muitos anos, as pessoas escreverem "trata o próprio", e não apenas "trata". Qual é a ideia de reduzir a expressão deste modo, tornando-a tão críptica? "Trata"! - pode significar tanta coisa. Trato-te da saúde. Trato-te da vida - tudo coisas à Máfia. Penso no Michael Corleone a despachar o desgraçado do Fredo e fazer um apontamento mental na agenda - "trata".
Agora que penso (ou continuo a pensar) nisso, talvez a ideia seja mesmo manter a expressão críptica, indecifrável, inteligível apenas para os iniciados, para fugir da bófia e do sistema legal, uma coisa à cockney, o melhor exemplo de linguagem anti-sistema. "Trata", o mote do rebelde que só outro rebelde pode compreender.
Trata. Trata.
Amanhã se calhar escrevo outro post, ou melhor - trata.