quarta-feira, 31 de março de 2010

Casas assombradas


Gosto de casas. Mais especificamente, gosto de casas abandonadas, em ruínas, carcaças à beira da estrada ou perdidas nos pinhais feios deste país, assombradas.
As casas são assombradas não por fantasmas (quer dizer - eu não acredito em fantasmas, mas como dizia o outro, que os há...), dizia, assombradas não por fantasmas, mas por memórias. Quanto mais velha é uma casa, mais memórias tem. Gosto de pensar no que se passou ali, no que poderá ter acontecido para que um lugar que foi feito para acolher pessoas não ter agora ninguém. Pode ter ocorrido um grande e horrível crime, passional, trágico, ou talvez banal, sem sangue, não sei, mas sei que a minha imaginação inventa, inventa, inventa sem parar sempre que tenho a sorte de pisar uma destas pobres casas em ruínas.
Tenho sempre pena quando vejo casas abandonadas com janelas emparedadas, pesadas correntes à porta, para afastar as pessoas de um sítio onde elas deveriam estar. Recentemente, tive a sorte de ir passear a uma montanha alta, verde, esplendorosa, que, além da beleza natural, tinha um hotel abandonado mesmo lá em cima. Nem quis acreditar na minha sorte. O porte escuro, escaqueirado, do edifício despontava por entre árvores e flores verdinhas, frescas, que contrariavam a soturnidade do hotel. Deslumbrante. Quis entrar no recinto, atrevi-me a subir umas escadinhas cheias de erva daninha, mas pus-me imediatamente a fugir a sete, oito, nove, pés, porque ouvi um ladrar imenso de uns cães absolutamente psicopatas, e tive medo que me viessem morder cheios de vontade. Ainda olhei para trás para os ver, gordos, grandes, castanhos, maus. Fiquei com tanta pena de não poder visitar aquele hotel recheado de fantasmas, de coisas que se passaram ali, quem sabe um menino a passear pelos corredores com um triciclo, incessantemente, duas meninas de olhos parados que repetem "come play with us, Danny...", um quarto onde não se pode entrar, uma velha desfigurada, desdentada, louca, a rir...
Vejo muitos filmes de terror. Mas não foram estes que me despertaram o gosto por casas abandonadas, que ninguém quer. Foram dois livros em particular; o primeiro foi Jane Eyre, da minha muito querida Charlotte Bronte (eu adoro as irmãs Bronte, mas o meu pai goza comigo, porque acha que elas são uma grande seca e não tem pachorra para histórias de meninas pobrezinhas governantazinhas; diz-me que eu já devia ter ultrapassado as Bronte, mas não, nunca ultrapassei nem quero), continuando, Jane Eyre, com aquele ambiente quase claustrofóbico, a Jane fechada no quarto vermelho em pequena, a louca fechada no sótão, uma casa cheia de segredos, cheia da vida de muitas pessoas; o outro livro foi Rebecca. A omnipresente mansão de Manderley, com a governanta vestida de preto, sem nada além de fel, ódio, mal, e o também omnipresente fantasma de Rebecca que paira por todos os quartos, vê tudo, sabe tudo, não deixa ninguém escapar. O que será viver numa casa com olhos, com ouvidos, que respira connosco? Consigo imaginá-lo quando encontro casas abandonadas, e por isso gosto tanto delas.
Porém, ainda antes deste dois livros, houve um outro elemento de fundamental importância que me revelou o interesse de um casarão repleto de memórias. Não, não foi um livro nem um filme, mas sim uma telenovela baseada num livro, chamada, dramaticamente, A Sucessora (nota para os senhores da TVI: pensem em arranjar, pelo menos, títulos decentes, retumbantes, para os dejectos que passam todas as noites, Olhos de Mar, Cabelos de Mel, Xixi e Cocó e outras pérolas do género. Uma coisa como A Sucessora, curto e com impacto, é que é). Não me lembro de quase nada desta telenovela, porque, além de ser ainda muito, muito pequena, a minha mãe quase nunca me deixava ver. Lembro-me, porém, que tratava da temática de uma jovem que casara com um homem rico e viúvo, que a tinha levado para o seu casarão onde havia um quarto sempre fechado, uma governanta maléfica, e a memória sempre eterna da falecida mulher. Lembro-me também de chegar ao colégio e todos os miúdos discutirem animadamente o que estava no quarto fechado: o cadáver da falecida mulher; a falecida mulher afinal viva, mas em cadeira de rodas; a versão mais macabra constava da falecida mulher afinal viva, amarrada a uma cadeira sem poder sair dali, alimentada pelo marido à colher.
Esta telenovela era, obviamente, inspirada na Rebecca e no livro homónimo (homónimo da telenovela, ou seja, também chamado A Sucessora) de uma autora brasileira, Carolina Nabuco. Por acaso, no Verão passado, li este livro, cheia de expectativa (tanto que esta Carolina processou a Daphne Du Maurier por plágio, mas, ao que sei, não ganhou). Infelizmente, o livro da Carolina tem não um lagarto pintado, mas alguma falta de piada. Talvez tenha valor pela descrição de algum colorido realista (eish, que profissional, eh eh), mas não achei grande coisa.
Para os queridos leitores que chegaram ao final deste post, que eu duvido que tenham sido muitos, porque isto de ler textos longos em blogs é o que é, eu própria também não costumo ter grande paciência, enfim, para os leitores que me acompanham até ao término, o meu muito obrigado, espero que tenham gostado, amanhã volto, volte comigo.
Era a brincar. Era para imitar aqueles talk shows foleiros e tal, tanto que eu amanhã nem sei se consigo cá vir. Isto para dizer que gosto de casas abandonadas, assustadoras, terríveis nas suas memórias, feitas da vida das pessoas.
E também para dizer que há um site magnífico que eu gosto muito de visitar e que consta de um arquivo lindíssimo de fotografias de locais abandonados. De uma beleza estranha e algo incompreensível, porque locais abandonados costumam ser feios. Mas, na verdade, não são. A beleza está em todo o lado e, de facto, e como dizem os ingleses, está no olhar de quem vê. O site é este.
Agora sim, muito obrigada, até amanhã, talvez.


Karaoke

Esta música permite-me um momento de pausa, em que canto com toda a moral que consigo, escova na mão a fazer de microfone, olhos fechados se preciso for, com toda a alma e todo o sentimento de que sou capaz, assumida e convictamente pirosa, lamecha, de lagriminha ao canto do olho, absolutamente arrebatada, rendida à doçura fofinha, queridinha, tudo acabado em inho, desta maravilhosa canção. Uma absoluta delícia.
Não resisto, mesmo. Adoro, adoro, adoro. Viva o Stevie.

terça-feira, 30 de março de 2010

Gostar de cães


Há algo que me intriga e que se prende com aquele tipo de pessoas de quem toda a gente gosta.
Há, efectiva e estranhamente, pessoas assim, que agradam instintivamente a gregos, troianos, espartanos e quejandos. A todos.
Impressionante.
São, normalmente, pessoas doces, com alguma personalidade, muito divertidas mas sem nunca chegarem ao impositivo, com paciência para ouvir os outros, embora revelando muito pouco acerca de si. São seres humanos de tal modo agradáveis e aprazíveis que é impossível vilipendiá-los, dizer mal, enxovalhá-los, atrever sequer um pensamento ligeiramente menos elogioso acerca deles, sob pena de nos sentirmos as piores pessoas do mundo. Pensar mal deles, ou não gostar deles, equivale quase a dizer que não se gosta de cães. Não gostar de cães é ser péssima pessoa, como todos sabemos, aliás - Edgar Allan Poe compreendeu-o exemplarmente, escrevendo, no seu magnífico conto "The Black Cat", o seguinte: to those who have cherished an affection for a faithful dog, I need hardly be at trouble of explaining the nature or the intensity of the gratification thus derivable. There is something in the unselfish and self-sacrificing love of a brute which goes directly to the heart of him who has had frequent occasion to test the paltry friendship and gossamer fidelity of mere Man (acho este excerto delicioso).
Portanto, há certo tipo de pessoas que, misteriosamente, de formas e trejeitos incognoscíveis, pelo menos para mim, reúnem um consenso inabalável, da mesma forma que os cães o conseguem fazer. Vão directamente ao coração dos outros, como diz Poe, nada a fazer.
Como exemplo, lembro-me apenas de gente tipo Jamie Oliver. Ainda não ouvi absolutamente ninguém que me conseguisse dizer mal do Jamie Oliver. É simpático, bom comunicador, enérgico, tem programas interessantes, cozinha bem, é criativo; mesmo quem o acha irritante não consegue deixar de reconhecer que sim senhora, é um indivíduo que trabalha bem, preocupado com a alimentação das crianças, que tenta melhorar o regime alimentar paupérrimo em Inglaterra, etc. e tal.
O Jamie Oliver é o cão de toda a gente. Eu também gosto imenso dele, até porque tenho tendência para achar cães um doce, excepto quando ladram e se tentam atirar às pessoas. De resto, vão directamente para o meu coração.

O absoluto banco de jardim e a absoluta pessoa que se sentou nele

Daqui a pouco vou ao Campo de S. Francisco ver o banco onde Antero de Quental se suicidou.
Lembro-me de, na escola secundária, ter uma professora de Português que nos tinha explicado o suicídio de Antero pela impossibilidade que este sentia em encontrar o "Absoluto", e que devia ter achado que o tal Absoluto vinha com a morte, o que até se compreende, de modo que enfim, mal por mal, tinha decidido acabar com tudo com dois tiros.
Na verdade, não foi assim tão detalhadamente que ela nos explicou. Disse apenas que, porque Antero compreendera que o tal Absoluto era impossível de encontrar, se tinha suicidado.
Bom. A professora era, com toda a justiça, esforçada, mas este episódio de encontrar a razão para o suicídio de Antero ali, numa aula de uma hora, para gatos pingados de dezasseis anos, foi quase patético. As pessoas de dezasseis anos, apesar de tudo, não são atrasadas mentais (espera-se). Até elas conseguem discernir um disparate de uma coisa inteligente.
Mas enfim. Porque, felizmente, a história do Absoluto que nunca mais chegava, qual Godot, nunca me convenceu devidamente, lá irei eu hoje, respeitosamente, ao banco de Antero.

terça-feira, 23 de março de 2010

O insustentável peso das palavras

Não gosto nada quando as pessoas me vêm chatear com sentimentalidades. Detestando o Primo Basílio, percebo, de alguma forma, o quão irresistível seria gozar com as cartas de romance barato e banal que a burguesinha Luísa lhe enviava. Realmente, aquilo devia ser um folhetim de bradar aos céus, o que, de qualquer modo, não desculpa de todo o repugnante Primo Basílio, mas enfim.
Não gosto, em particular, quando as pessoas usam o verbo "amar" à minha frente, que é verbo que me faz uma espécie que quase desemboca em formigueiro, de tal modo me incomoda. Há palavras com um peso intocável, retumbante, e esta é uma delas. Não se deve usar em público, sem mais nem menos, por dá cá aquela palha, do pé para a mão, ao deus-dará, assim e assado e outros lugares-comuns. Este é um verbo cujo peso é, pura e simplesmente, demasiadamente grande para que eu o possa levantar. Prefiro não ter de pensar nisso.
As pessoas não percebem o peso das palavras. Há palavras leves, diáfanas, como o verbo "gostar", como o substantivo "afecto"; há outras, como Milan Kundera saberia e bem, insustentavelmente pesadas. É o que se passa com o verbo "amar", que esmaga, incomoda. Não quero que me firam os ouvidos com ele.
Mas, por vezes, as pessoas põem-se a falar desbragadamente à minha frente e fartam-se de usar palavras pesadíssimas, insustentáveis, literalmente insuportáveis. Não sei o que posso fazer.
Tenho ouvidos sensíveis. É um problema.

segunda-feira, 22 de março de 2010

Durante o dia, principalmente se tenho tempo para ouvir música, tenho 300 000 ideias absolutamente brilhantes.
Mas depois esqueço-me de todas elas quando chega a altura de ir dormir.
Eu tenho ideias de génio. Infelizmente, tenho uma memória de porcaria.

Embalar a trouxa e zarpar


O poema que mais me contorceu as entranhas por o sentir tão verdadeiro foi aquele de Fernando Pessoa, "viajar! Perder países! Ser outro constantemente".
Gostava de ter o tipo de vida que me permitisse pular de país em país, ilha em ilha, lugar em lugar, sem partir demasiadamente depressa, para me poder afeiçoar, e porém sem nunca ficar o tempo suficiente para me afeiçoar demasiado. Permanecer e partir na altura certa, com conta, peso e medida, tal como a vida bem vivida exige.
O privilégio de poder ser o "outro" quando se quiser, quando assim o entendermos, é algo que invejo. Poder pegar nas malas e deixar tudo, conseguir reunir os pertences numa trouxa, cerrar os punhos e andar. É uma grande liberdade - talvez a única liberdade.
Talvez por isso eu me deslumbre com Corto Maltese, não apenas porque é bonito, alto, moreno e eloquente, mas, fundamentalmente, porque não conhece amarras de espécie nenhuma. Sorte a dele ser apenas personagem de banda desenhada.
Há amarras que são benéficas. O amor é uma amarra. Mas não deixa de ser uma amarra, tal como todas as outras coisas que alguém nos disse uma vez que nós precisamos - casas, empregos, conta no banco, número de contribuinte. Todas estas estranhas identidades heterónomas que quase apagam a nossa própria identidade. É quase contra-natura.
Como é que podemos ser nós próprios quando aquilo que queremos é ser outro, viajar, perder países? Quando nem a nós queremos pertencer?
É muita filosofia para a minha vã cabeça .

Viajar assim é viagem.
Mas faço-o sem ter de meu

Mais que o sonho da passagem

O resto é só terra e céu.


Justificar completamente

Meu amor, você me dá sorte, meu amor, você me dá sorte na vida..



Coisas que adoçam, adoçam, adoçam a vida de uma pessoa, quando ela vai distraída a pensar.

sábado, 20 de março de 2010

Orgulho e preconceito


Ontem estava a jantar com uns amigos e arranjei maneira de desviar a conversa para um assunto que muito me apraz e que é o Dartacão. Começámos a falar dos Moscãoteiros e eu disse que o meu preferido sempre foi o Arãomis, porque era o cão poeta, que dava rosas à namorada, escrevia poemas e gostava muito de livros. Era um intelectual. Disseram-me logo: "ó Rita, mas tu também sempre gostaste de homens amaricados!"
Pronto. É isto, as pessoas passam a vida a insultar-me. Mas continuando. Primeiro, o Arãomis era um cão, portanto a crítica é um bocado injusta. Segundo, não compreendi a relação causal que ali se estabelecia. Então o Arãomis era amaricado porque gostava de livros? Como é que o Arãomis, mosqueteiro, que usava espada, quando em aventuras ia era sempre o primeiro, quando ia combater já não há rival algum, o seu lema era um por todos e todos por um, era "amaricado" porque oferecia rosas à namorada e escrevia poemas?
Rapidamente me contradisseram - "não, não, o Arãomis era amaricado porque era mulher, então tu não sabes que ele era uma mulher". Ao que eu fui forçada a responder que, lamentavelmente, essa estupidez do Arãomis ser mulher pertencia a outros desenhos animados, mais tardios, e convenientemente chamados "D'Artagnan", com a voz do grande Miguel Guilherme, e não "Dartacão".
"Ah, mesmo assim, se fores escolher o moscãoteiro mais amaricado, tem sempre de ser o Arãomis. Se fores ver as orelhas dele e tudo, tipo cocker, o mais amaricado é ele". - efectivamente, para este argumento das orelhas do Arãomis não tenho refutação possível. Mas ninguém é perfeito.
E porém, não posso deixar de pensar que este entusiasmo em apelidar o Arãomis de moscãoteiro amaricado releva uma certa corrente de pensamento subjacente, a de que o homem que é homem pode gostar de livros, sim, mas não em demasia. Serve-se deles e depois deita-os fora quando chega a altura de arranjar máquinas, dar marteladas, ser desenrascado. O que não passa de um estereótipo mentiroso. Aliás, a forma como essa grande fonte de saber chamada Wikipedia descreve o Ara(o)mis é muito explícita relativamente à sua masculinidade:

Friendship is so important to Aramis that it is strongly implied, at the end of Le Vicomte De Bragelonne, that he cried (for the first time in his entire life) when one of his friends died.

Aqui está - um homem não chora, e se chora, é pelo seu amigo homem, nunca por uma mulher qualquer. Muito à D.H. Lawrence, que haveria com certeza de gostar destes bonecos.
No entanto, e muito curiosamente, a versão desenho animado em que Aramis é mulher explica-se da seguinte forma:

In the anime version, Aramis is a woman who cross-dressed into a man in order to become a musketeer. Aramis' love of the arts in the original novel influenced the producers of the Japanese cartoon series to change the character's gender.

Ai gosta de livrinhos e versalhada, coisa de gaja? Então façamos mesmo dele uma gaja e resolve-se o problema. Que preconceito. Este mundo ainda é tão dividido em pequeninos retalhos tradicionalistas que definem o nosso comportamento...

Não sei bem o que pensar deste post. Nunca me passou pela cabeça que se pudesse escrever tanto sobre um desenho animado, ainda por cima cão. Mas a mente tem razões que o próprio coração desconhece.

nota: a propósito de bonecos e Dartacão, descobri este blog giríssimo.

Lua de fel

O feminismo morreu? Já não faz sentido?
Ah, pois, eu não acho, nem na Europa, nem em qualquer outro lado. Faz todo o sentido, especialmente nos dias que correm, em que se publicam livros muito ocidentalizados e libertários, muito conscientes do papel da mulher da sociedade, e que dizem coisas assim deste calibre elevadíssimo:

College was plan B. I was still hoping for plan A, but Edward was so stubborn about leaving me human... [...] Edward didn't seem to understand why I wouldn't let him pay my college tuition (he was ridiculously enthusiastic about plan B).

Isto vem do New Moon, versão livro, cujo primeiro capítulo está disponível on-line e que eu me dei ao trabalho de ler. Queria saber porque é que isto vende tanto. E agora percebo que vende porque retrata a história de um rapaz vampiro, jeitoso e rico, que se apaixona por uma lambisgóia pobre cujo sonho é tornar-se vampira para não ter de trabalhar, muito menos ir para a universidade, descrita como apenas o "plano B". Devo dizer que, nos tempos que correm, minados pela influência nefasta do tal credit crunch, talvez a rapariga esteja de facto a optar pelo mais seguro. Portanto, esta historieta, com aspirações a nouveau-Romeu e Julieta (a epígrafe do livro é um verso desta peça, que fofinho), proclama o casamento como a aspiração mais elevada da mulher, e um namorado invencível ao lado a tomar as decisões todas, já para não falar da elevação moral desta literatura - a autora, Stephanie qualquer coisa, disse numa qualquer entrevista que estava farta de ver jovens bombardeados com sexo e drogas e outros malefícios, e portanto decidiu escrever uma linda, pura história de amor, decente, de moral e lágrima, em que não há galdeirices contra-natura e é tudo respeitador da ordem estabelecida, homem dominador, menina submissa sem estudos, dele dependente para tudo. Ah, que já vejo anjos e os arcanjos deleitados com isto...
Não sabia que as adolescentes, e talvez algumas mulheres, ainda iam nesta conversa. Pensava que o admirável mundo novo lá fora seria suficiente para sonharem outras coisas. Mas pronto. Cada um é como cada qual.

quinta-feira, 18 de março de 2010

Já estou outra vez com saudades do Blogger Hipotético.
Mas não tenho ideias nenhumas.
Estou a pensar talvez, assim, não sei, eventualmente.

Roubo de identidade


Descobri uma pessoa no facebook que usa exactamente a mesma imagem que também aqui está no blog, a aguarela da Louise Brooks pelo Hugo Pratt, o pai do (esse sim, absolutamente meu) Corto Maltese.
Fiquei devastada. Não há explicação para aquilo que eu senti quando vi, na caixinha que diz "amigos em comum", a minha (minha!) foto. Depois, muito tristemente, lembrei-me que este rosto sorridente, de pescoço alto, de torre, não é meu. É um desenho de uma outra pessoa que não tem nada a ver comigo.
Mas habituei-me tanto a esta imagem, uso-a há tanto tempo, já, sempre gostei tanto dela, dos olhos sorridentes, da expressão afectuosa, que me habituei a pensar que, de uma certa forma, tudo isto me pertencia. Foi preciso outra mulher qualquer, que teve exactamente a mesma ideia do que eu, para que me apercebesse, duramente, que não, a imagem com a qual me identifico não é minha. É, até, estranhamente, muitíssimo alheia. E portanto, mais uma vez com grande pena minha, não posso levar ninguém a tribunal por roubo de identidade. Tenho de aceitar. E isso entristece-me profundíssimamente - a aguarela de Louise Brooks é de mim feita alheia.
Dou por mim a perguntar se essa outra mulher que também usa a mesma aguarela a sabe respeitar e salvaguardar. Se aprecia as pinceladas esbatidas, pastéis, que rodeiam o rosto, se se detém a contemplar a expressão doce do olhar da Louise, a perceber a ligeira inclinação do pescoço de torre, esguio, se sorri, como eu sorrio, em resposta ao sorriso irresistivelmente simples da Louise, a encantar-se, como eu me encanto, com a promessa de ingenuidade e genuinidade que o rosto deixa transparecer.
Acho que não, acho que a mulher não faz nada disto. Só eu é que faço porque este pormenores, a forma como eu gosto desta aguarela, isto sim, é mesmo só meu.
E portanto não consigo desfazer-me da Louise, que sempre acompanhou este blog desde o iniciozinho. Não consigo, não consigo, não consigo. Prefiro continuar na ilusão perdida de que ela é minha. Tal como Corto Maltese. Mas esse, ai de que me vier dizer que não é meu.

quarta-feira, 17 de março de 2010

E no entanto, ela move-se

Acho isto lindo.
E acho lindo que giremos à volta do sol, porque, pelo menos, temos mais animação, mais movimento, muita purpurina, muito confetti, muita sardinha assada. Tem muito mais piada do que estarmos parados, sem ir a lado nenhum, à espera que o sol descreva o seu círculo.
Não sei como é que os senhores da Idade Média não viam isto.

Estou olhando o teu retrato, meu velho pisano,
aquele teu retrato que toda a gente conhece,
em que a tua bela cabeça desabrocha e floresce
sobre um modesto cabeção de pano.
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da tua velha Florença.
(Não, não, Galileu! Eu não disse Santo Ofício.
Disse Galeria dos Ofícios.)
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da requintada Florença.
Lembras-te? A Ponte Vecchio, a Loggia, a Piazza della Signoria
Eu sei... Eu sei...
As margens doces do Arno às horas pardas da melancolia.
Ai que saudade, Galileu Galilei!

Olha. Sabes? Lá em Florença
está guardado um dedo da tua mão direita num relicário.
Palavra de honra que está!
As voltas que o mundo dá!
Se calhar até há gente que pensa
que entraste no calendário.

Eu queria agradecer-te, Galileu,
a inteligência as coisas que me deste.
Eu,
e quantos milhões de homens como eu
a quem tu esclareceste,
ia jurar -- que disparate, Galileu!
-- e jurava a pés juntos e apostava a cabeca
sem a menor hesitação --
que os corpos caem tanto mais depressa
quanto mais pesados são.
Pois não é evidente, Galileu?
Quem acredita que um penedo caia
com a mesma rapidez que um botão de camisa ou que um seixo da praia?
Esta era a inteligência que Deus nos deu.

Estava agora a lembrar-me, Galileu,
daquela cena em que tu estavas sentado num escabelo
e tinhas à tua frente
um friso de homens doutos, hirtos, de toga e de capelo
a olharem-te severamente.
Estavam todos a ralhar contigo,
que parecia impossível que um homem da tua idade
e da tua condição,
se estivesse tornando num perigo
para a Humanidade
e para a Civilizacão.

Tu, embaraçado e comprometido, em silêncio mordiscavas os lábios,
e percorrias, cheio de piedade,
os rostos impenetráveis daquela fila de sábios.
Teus olhos habituados à observação dos satélites e das estrelas,
desceram lá das suas alturas
e poisaram, como aves aturdidas -- parece que estou a vê-las --,
nas faces grávidas daquelas reverendíssimas criaturas.
E tu foste dizendo a tudo que sim, que sim senhor, que era tudo tal qual
conforme suas eminências desejavam,
e dirias que o Sol era quadrado e a Lua pentagonal
e que os astros bailavam e entoavam
à meia-noite louvores à harmonia universal.
E juraste que nunca mais repetirias
nem a ti mesmo, na própria intimidade do teu pensamento, livre e calma,
aquelas abomináveis heresias
que ensinavas e escrevias
para eterna perdição da tua alma.

Ai, Galileu!
Mal sabiam os teus doutos juízes, grandes senhores deste pequeno mundo,
que assim mesmo, empertigados nos seus cadeirões de braços,
andavam a correr e a rolar pelos espaços
à razão de trinta quilómetros por segundo.
Tu é que sabias, Galileu Galilei.
Por isso eram teus olhos misericordiosos,
por isso era teu coração cheio de piedade,
piedade pelos homens que não precisam de sofrer, homens ditosos
a quem Deus dispensou de buscar a verdade.

Por isso estoicamente, mansamente,
resististe a todas as torturas,
a todas as angústias, a todos os contratempos,
enquanto eles, do alto inacessível das suas alturas,
foram caindo,
caindo,
caindo,
caindo,
caindo sempre,
e sempre,
ininterruptamente,
na razão directa dos quadrados dos tempos.
Poema para Galileu, António Gedeão

Matéria para o teste

Às vezes, penso se serei uma boa cidadã. Acho que sou, porque a mim ninguém me dá perdão por evasões fiscais se eu pagar 5% de coisas (mil desculpas, não resisti).
Continuando. Considero importante ser boa cidadã, isto é, como diziam os renascentistas, ser "civil", mas hoje fui multada cruelmente por um deslize absolutamente inofensivo, que foi ir na faixa do bus, como se isso fosse um grande e horrível crime, e de alguma forma senti que esta multa penalizava não apenas a presença da minha inocente viatura na porcaria da faixa do bus (mas a PSP não tem mais que fazer?!), como era também um castigo absolutamente alietório e até alienante, como acontece a Kapa no Processo. Foi, aliás, quase como ele que me senti. Não foi agradável.
Tal como não é agradável ter de suportar o olhar dos outros, coisa que abomino, aliás, por mim, as outras pessoas podiam falar comigo a 15 metros de distância, aos gritos, que eu não me importava. Não sei se toda a gente passa por isto, mas tenho quase a certeza que sim. Refiro-me a certos momentos na vida em que usamos uma certa roupinha, ou um batonzinho mais especial, enfim, momentos em ostentamos algo que é esteticamente aprazível, e há sempre alguém que nos olha de cima a baixo, mas é incapaz de pronunciar o elogio que ali está contido nos lábios, mesmo, mesmo, a rebentar, mas nunca proferido porque isso, para algumas pessoas, é uma "fraqueza". E ficam ali a olhar, por brevíssimos segundos, e nós ficamos ali a ignorar o breve momento em que a fel tomou conta de alguém. É desagradável.
Ou talvez olhem para nós para apreciar a fealdade ou a piroseira, o que é igualmente legítimo. Eu só solicito é que as pessoas sejam discretas, ou que acompanhem o olhar com palavras. Digam "olha tão giro", ou então "eh pá, isso é um bocadinho feio, para a próxima tens de ter mais cuidado", mas digam, ao invés de olhares venenosos, ostensivos. Feios, digamos.
E isto, olhares de fel e multa, confirma apenas a minha triste conclusão, que é a de que este mundo nos mantém sempre em permanente estágio, raramente nos dá contrato, e quase nunca nos passa a efectivos. É constante avaliação, todos os dias, pelos pares, pelos superiores, pelos inferiores, por amigos, por conhecidos, por estranhos, por tudo e todos. Quando finalmente passamos todos os testes, é tarde demais; se, pelo contrário, chumbamos um, a possibilidade de melhoria de nota é inversamente proporcional à nossa idade, isto é, torna-se cada vez mais difícil à medida que envelhecemos.
E por isso eu defendo que nunca se estude assim muito para o teste. Sei que isto parece a aurea mediocritas, mas eu acho que não é. Até me parece mais uma questão de sanidade mental.
Corre como correr.

terça-feira, 16 de março de 2010

Palavras e expressões que fazem rir

"Agastado" e respectivo verbo (eu agasto, tu agastas, ele agasta, etc.)
Fazer espécie, especialmente na versão "faz-me muita espécie".
Desenxabido, especialmente na versão "desen-xá-bido".
Rega-bofe.
Andar ao deus-dará.
Patega e patego ("não sejas patega!", disseram-me uma vez. Não pude ficar zangada porque me estava a rir).
Maniento.
Coiso.
Mel-réis, como se dizia antigamente do dinheiro. Nem sei se está bem escrito.
Pândega.
Pança.
Balofo.
Badameco.
Rambóia.
Treco-lareco.
Converseta.
Tist'ó cão.
Perua (infelizmente, a versão mais cómica desta palavra é aplicada às senhoras).
Cóboiada.
Justamente (na versão "pois, eu j'stamente foi isso que lhe disse").
Você.

Sem esquecer a forma de tratamento "pá", que sempre ocupará um lugar muito especial na minha lista. A língua portuguesa é soberba, e nunca me canso de dizer, constatar e apreciar tal realidade.

Este homem compreende-me

When the waiter hands you the menu and says “Has anyone explained our concept?”, everybody old enough to have been to McDonald’s is competent to reply: “You bring me food, I eat it, I pay, you give me my coat back.”

E é isto. AA Gill, que escreveu este texto, faz crítica de restaurantes para o Times há que tempos (em 2005 até foi a um restaurante português e fartou-se de dizer mal, num texto que vacilava entre o ofensivo e o brilhante, e foi engraçadíssimo, embora eu tenha ficado absolutamente agastada, mas pronto - o texto pode ser lido aqui), continuando, o AA Gill tem absoluta razão acerca desta coisa absurda do restaurante com "conceito". Se há coisa que me aborrece em restaurantes, para além do sinal de casa de banho a dizer "mulher" ao invés de "senhora" - gosto das coisas com uma certa etiqueta, pronto, é uma idiossincrasia minha - é isto do "conceito". Se estou sentada à mesa à espera que me tragam a lista (evitemos aqui a opção desagradável entre "menu" e "ementa") e me perguntam "conhece o nosso conceito?", fico logo furibunda. Conheço, sim, o conceito é comer. Mais alguma coisa que devo saber? Não estou a ver.
Não gosto de restaurantes com "conceito" porque isso normalmente equivale a eu ter de pagar a refeição e ainda ter de suportar constantes idas à mesa, a interromper conversas e deglutição com "está tudo bem aqui?", "não é preciso nada"?
Eu sei que isto são tudo tentativas de bom atendimento. Sei que as pessoas estão a fazer o seu trabalho. E também sei que, normalmente, estas tentativas equivalem a eu não voltar ao estabelecimento, principalmente se estes pretensiosismo acontecem em Portugal, que tem comida boa, simples, despretensiosa. O melhor da nossa comida é o seu despretensiosismo, e irrita-me um tanto ou quanto que isso se desvaneça com a história do "conceito". Voltemos à nossa encantadora simplicidade, é só isso que eu solicito.
Enfim. Post inútil e irrelevante, sei bem, mas precisava, mais uma vez, de me esvaziar de toda a fel, o que começa a ser um hábito e pronto, enfim, mil desculpas.

Desampara da minha janela

Há coisas que me dão um certo nó no estômago.
Por exemplo, aquela música linda do Bob Dylan chamada It Ain't Me. O poema é sobre um homem que se vai embora porque não quer ser o amor da vida de uma qualquer mulher. Eu compreendo a posição do Bob Dylan - também compreendo a posição da qualquer mulher. No entanto, indendentemente disto, o que me angustia levemente nesta canção é o tom de desilusão que estes assuntos acarretam sempre. Admite-se que, por alguns momentos breves, a ideia de felicidade foi de facto possível, mas o mundo, ou o pessimismo, ou o tédio, ou a preguiça, foram mais fortes, e resta a ruína. É tal e qual como a canção do Serge Gainsbourg sobre a qual escrevi há mais de um ano - Je Suis Venu Te Dire Que Je M'En Vais. Esta é, tal como a canção de Dylan, cruelmente bela, e trata do mesmo assunto, que não deixa de ser quase um lugar-comum: o homem que parte, a mulher (que não passa de uma personagem-sombra, em ambas as canções) que fica, chorosa e estilhaçada. É uma pena. Eu tenho, de facto, pena desta sombra, desta mulher invisível.
Tem graça que, no caso das canções masculinas que falam sobre a ruptura, a ideia é tentar sempre amenizar a coisa com palavras sensatas e bonitas, mas não necessariamente justificar, ao passo que, quando as mulheres cantam sobre deixar maridos ou namorados, justificam-se sempre com "eu dei-te tudo e tu eras um grande estúpido", ou "eu dei-te tudo e tu mesmo assim não quiseste". A verdade é que me baseio em apenas três canções para esta asserção, e que são as supra-citadas Bob Dylan e Serge, sendo que a terceira é aquela dessa grande cantora com toda uma séria carreira por trás, Leona Lewis, apropriadamente designada por "Better in Time".
Pensando bem, é capaz de não ser grande amostra.
Esqueci-me do objectivo inicial deste post. Vou ter de terminar por aqui.
Nota apenas para dizer que, quanto a mim, a perfeita canção de Bob Dylan é, com certeza, sobre muito mais do que uma ruptura amorosa. Mas enfim.



domingo, 14 de março de 2010

Plástico


Pronto. Vou falar do Sexo e a Cidade. Vou, porque há coisas que me agastam, e portanto este vai ser mais um post a destilar fel, mas não é contra a série.
Gosto muito da série. Tem piada, é um regalo para os olhos com os vestidos e os sapatos e os cabelos e as pessoas podem dizer-me à vontade que aquilo são mulheres a falar como homens gay, ou vice-versa, que eu não quero saber, gosto à mesma.
E porém. Não são as meninas do Sexo e a Cidade, com sua frenética ânsia e interminável conta bancária sempre pronta a esvair-se em sapatos ridículos, que me enervam. Não. O que me enerva são as meninas com frenética ânsia a esvaírem-se em sapatos e malas ridículas e de plástico e que vivem em Portugal que me enervam. A demanda constante pela "marca". Os óculos esbugalhados com umas letras garrafais nas hastes, DIOR, DOLCE, VERSACE, PRADA. Hã? O que é isto? As Louis Vuitton falsas, já a dar de si, fios soltos, costuras descosidas. Os sapatos de saltos altíssimos, cheios de chulé, que desfazem calcanhares, que permitem apenas passinhos periclitantes que dão vontade de rir.
Lamento muito, mas é estúpido. Tudo isto é estúpido, é pobreza de espírito. É tão estúpido e parvo como ir a um restaurante cujo "conceito" é "gourmet low cost", como eu fui noutro dia, portanto enfio a carapuça, porque como já escrevi antes, carapuças há-as para todos os gostos e eu mais remédio não tenho do que usar a minha. Enfim. Que um restaurante tenha um "conceito" que não seja comer e beber, já acho estranho; que o conceito seja gourmet mas low cost, acho de uma pretensão meio parva. Mas devo dizer que a comida, por acaso, estava óptima, e o ambiente também era giro, portanto se calhar ainda lá volto. Como disse, tenho uma carapuça e uso-a.
O problema é que eu vejo o país perdido nestas parvoíces, nesta ânsia imparável por coisas feias, baratas, falsamente bonitas, falsamente inteligentes. É terrível.
Aceitemos todos: não temos dinheiro. Ok? Não temos. Aceitemos todos que: não podemos ter malas Louis Vuitton, nem Manolos, nem viver em Nova Iorque, nem pensar em homens o dia todo e ainda ganhar dinheiro com isso. Aceitemos que temos de viver de outra forma, comprar outras coisas. Mais baratas, mais honestas, mais bonitas.
É que estou farta de ver gente feia, coisas feias, plástico, plástico brilhante, à minha volta. Sapatos de plástico brilhante, malas de plástico envernizado, sorrisos de plástico brilhante, bleagh. Para onde é que eu tenho de ir para me regalar com a beleza natural da simplicidade? Para Trás-os-Montes? Não me apetecia, porque é um bocado longe, mas pronto, se for preciso vou. Por acaso, gosto muito de Trás-os-Montes. Tenho pena de ser longe do mar.
Vou ter muitas saudades do mar.

Sentidos de humor


Soube agora que a chamada "Academia", aquela que dá Óscares, decidiu retirar da cerimónia um sketch de Sacha Baron Cohen destinado a James Cameron, que era para não ofender o senhor.
A questão é que o (bom) humor pode, muitas vezes, ofender, o que é pena, mas é assim mesmo.
Lembro-me, com muito pesar, de ter estado uma vez numa conferência em que, num dos intervalos, para descontrair, se falou de filmes. Era o ano em que Borat, o filme do supra mencionado Sacha Baron Cohen, tinha sido exibido nos cinemas, deixando alguns muito agastados, e outros, como eu, perdidos de riso. Acontece que os colegas da conferência pertenciam aos primeiros, aos que tinham ficado agastados. A cena em Borat luta nu contra um bojudo, repugnante homenzinho gordo e peludo, cena inesquecível de tão irreal, ousada, inacreditável que é, foi descrita por todos como de mau gosto e nojenta. Eu concordei, de mau gosto e nojenta. E, curiosamente, é isso que faz dela algo de tão inesquecível. Mais do que fazer rir, a dita cena prolonga-nos o queixo até ele ir ao chão, porque parece impossível que alguém tenha filmado tal coisa.
Mas não, os colegas da conferência não iam na conversa. O Borat era coisa do diabo, repulsiva, boçal, sem a mínima piada, ao passo que eu estava ali especada, desesperada, a tentar explicar que sim, repulsivo, sim, boçal nem tanto, porque tem piada!, estranhamente, tem piada, e é tão difícil alguém conseguir um humor que roça o limite do mau mas nunca chega a ser mau, e por isso é tão bom. Fui muito infeliz na explicação deste paradoxo. Ainda me lembro de um rosto que se contorceu a olhar para mim, esganiçando-se a exclamar, do alto da sua pobre petulância ,"o Borat?! Que horrível".
Senti-me, naquele momento, absolutamente alienada do meu semelhante. O pior distanciamento que pode acontecer entre as pessoas é não serem capazes de se rir juntas. É um muro intransponível, um sentimento de solidão inexpugnável. Detestei, naquele momento, todas as pessoas à minha volta, detestei a conferência, quis voltar para casa. Depois encolhi os ombros e resignei-me.
O Rui Veloso cantava que não se ama alguém que não ouve a mesma canção. Eu acrescentaria: não se ama alguém que não se ri da mesma canção. É muito triste.

sábado, 13 de março de 2010

Façam greve, pequenos, façam greve

Façam greve na Páscoa, para chatear toda a gente, para chamar atenção. As greves são assim, têm de fazer efeito. Façam greve, para todos ficarmos a perceber de uma vez por todas que a TAP já não funciona, que a TAP só presta maus serviços, que é mais um triste sinal de um Estado pesado, lento, burocrático, falido. Façam greve para se poder dizer, ainda mais veementemente, que se a TAP fosse privada, nada disto aconteceria. Façam greve, que assim a privatização vem mais depressa e é assim que o país se quer, privatizado de uma ponta à outra, que o Estado não tem competência para nada. Este Estado, se calhar, não tem, de facto.
Não me passa pela cabeça contrariar o direito à greve, conquistado e adquirido, nem dizer que é "coisa do século passado", como o excelso Fernando Pinto não tem vergonha de dizer (e devia ter). Mas, com todo o respeito pelos pilotos da TAP, não me parece que esta greve beneficie alguma coisa, a não ser belas ideias como esta. Por mim, tudo bem. Aliás, se é para privatizar, para quê perder tempo, privatize-se já Portugal e vendam-no a Espanha, Inglaterra, França, EUA, talvez Índia ou China, futuras super-potências, sei lá, a quem o quiser comprar. Porque não? As únicas desvantagens seriam talvez salários baixos, exploração, desemprego, problemas que este país nunca conheceu, e que seriam imediatamente compensados por um maior recurso ao crédito e bancos novamente recheadinhos, a emprestar dinheiro a toda a gente, a emprestar dinheiro a si próprios, tudo liquidez, tudo a fluir, que alegria, que beleza.
Apagada e vil tristeza - vira-te e revira-te nos Jerónimos, Luís Vaz, que tens razões para isso. Mas olha, em compensação, a tua voz ainda canta com muita razão. Há que ver sempre o lado positivo das coisas, como diziam os Monty Python.

sexta-feira, 12 de março de 2010

Ó língua da minha terra, agora é que eu percebi...

Adoro linguagem barroca, excessiva, extravagante, adjectivos, muitos adjectivos, vírgulas, graus superlativos absolutos sintéticos e analíticos, conjunções copulativas e também causais, travessões, pontos e vírgulas, advérbios de modo, sujeitos intermináveis, predicados incisivos, complementos circunstanciais quilométricos, complementos agentes da passiva ad aeternum, apostos e complementos a perder de vista, frases que se prolongam e duram, duram, duram, e acima de tudo muitos adjectivos, tantos adjectivos, o Eça de Queiroz usava sempre adjectivação binária, por isso gosto tanto dele, por mim até podia usar trenária ou quaternária, que as valsas são sempre rápidas demais para meu gosto, e compassos mais longos oferecem mais tempo para disfrutar, que morfologia esplêndida tem o adjectivo, magnífico, magnificente, magnânimo, como se pode viver sem adjectivos, não pode, e a seguir a adjectivos gosto de vírgulas, essenciais para a frase não acabar nunca, e a seguir a vírgulas gosto do travessão, e acima de tudo gosto da língua portuguesa, que aguenta uma sintaxe de arrasar, uma sintaxe em que as frases nunca morrem, nunca sofrem o corte do ponto final, tão anglo-saxónico, e embora eu me considere uma anglófila porque gosto de inglês e de Inglaterra - gosto, sim, e muito -, continuando, apesar disto, o português contorna os pontos finais que é uma beleza, uma verdadeira arte, uma manobra de diversão linguisticamente perfeita, e portanto gosto de vírgulas, gosto de adjectivos, a quem Lobo Antunes e Cardoso Pires faziam guerra, e ainda bem para eles porque escrevem magnificamente e eu apenas me rendo a essa evidência, mas gosto de vírgulas, gosto de adjectivos, e abomino insensatamente, tal como Cesário Verde adorava ângulos agudos mas ao contrário, o ponto final.

Com que voz

Numa cena de Blue in the Face (vide vídeo abaixo), Jim Jarmush decide deixar de fumar e partilhar o seu derradeiro cigarro com Harvey Keitel, que trabalha numa tabacaria e que lhe vende tabaco há anos. Jim Jarmush diz que, entre outras razões, vai sentir muito a falta do cigarro porque, e passo a citar: sex and cigarettes, you've got to admit...having a cigarette after sex, that's like... a cigarette never tastes like that, you know. To share a cigarette with your lover...
Ao que Karvey Keitel responde, ah, that's bliss.
Eu não fumo, porque sou tisicazinha e não posso, embora ninguém diga olhando para mim, porque não me dá para emagrecer, mas enfim, são os padecimentos da alma e do corpo que por vezes assumem estranhas formas. Continuando. Não fumo, portanto não sei de que é que o Jim Jarmush fala, não faço ideia absolutamente nenhuma, nenhuma.
Sei, porém, o que é partilhar uma canção com um amigo. Isso sei bem o que é, e tenho sempre muitas saudades das nossas cordas vocais sintonizadas, gargantas esganiçadas mas muitíssimo empenhadas e convictas, absolutamente dedicadas àquela canção do princípio ao fim. Os poucos minutos que dura a canção são uma espécie de concretização da amizade. É verdadeiramente lindo. Chego a fazer playlists de canções que já cantei, no carro, na rua, numa festa, com este ou aquele amigo, quando tenho saudades dele ou dela. Quando volto a cantar a canção, é uma espécie de evocação da pessoa de quem sentimos a falta. E nem sempre se trata de boa música. Às vezes, são canções pirosíssimas. Mas sabe sempre tão bem cantá-las a plenos pulmões com um amigo. Partilhar uma canção com um amigo - ah, que felicidade.


quarta-feira, 10 de março de 2010

I miss their pictures









(Peço desculpa pelo título em inglês, tão piroso. Mas acho que se percebe a razão.)

E é isto uma senhora

Há um conto em Dubliners, de James Joyce, acerca de uma senhora que queria que a filha tocasse no recital de piano, e queria à força que isso acontecesse, de tal modo que começa o conto como personagem respeitável e incólume acaba a fazer figura de parva aos olhos dos outros, objecto de desprezo e escárnio. "E é isto uma senhora!" - é a última frase que pronunciam sobre ela.
Já não leio o conto há muito tempo, mas nunca me esqueci desta frase. Porque o mundo é exigente demais. As pessoas têm de ser sempre compostas, inteligentes, olhar por onde andam e nunca dar um passo em falso. Escolher amigos, profissão, casa e rotinas sem se enganarem, um engano, um único engano pode ser desastroso, depois não entras no curso que queres e vais para o desemprego, depois não arranjas o emprego que queres e és explorado e macerado até te pisarem o sangue, depois não te apaixonas e não te casas nem tens filhos e és infeliz para o resto da vida, quem sabe se não te tornas tarado, quem sabe se os outros não vão olhar para ti como o pequeno, talvez inofensivo mas é sempre de desconfiar, maluco que se senta à mesa do café, de meio sorriso na cara, a meter conversa com todos, a segredar palavras indecifráveis de si para si, emparedado numa solidão que mete pena, e depois como é?, é esta a vida que queres para ti?
É impossível viver assim. A senhora só queria ver a filha a tocar piano em público, deixem-na em paz.
Não se é menos senhora, ou menos pessoa, por causa disso.

Falsos, abomináveis ídolos


Que me lembre, nunca escrevi um post a descompor uma pessoa do mundo real de cima a baixo, tanto mais que aqueles que eu verdadeiramente gostaria de descompor são, normalmente, alvos demasiadamente fáceis, tipo Eduardo de Sá, de modo que não me dou ao trabalho de tal baixeza.
Hoje, porém, vou abrir uma excepção. E essa excepção é a Oprah, cuja irresponsabilidade chocante não será, com certeza, devidamente expressa pelas minhas tristes palavras espalhadas ao vento, como diria o Magnífico Bardo, aka Camões (não que eu alguma vez me compare a Camões - quer dizer: não comparo o talento, evidentemente, mas a tristeza se calhar até comparo).
Adiante. Ora, esta Oprah, que tem o grande defeito sumamente conhecido que é o de ter um problema de identidade profundo e pensar que é Deus, dedica um programa (programa 13, série 17 - por favor confirmem, se não acreditarem em mim) ao modo como mulheres de diferentes países vivem. E houve uma senhora do Dubai. E esta senhora do Dubai diz que tem uma vida muito confortável e mimosinha: a sogra tem um "chef" que lhe faz a comida toda, e ela própria tem uma criada filipina a viver em casa, porque a maior parte das famílias tem, além de um marido que lhe paga as contas todas do telemóvel, porque os maridos fazem isso às mulheres no Dubai. Mas atenção, que não se pense que no Dubai é só boa vida, não!, no Dubai também há pessoas que têm de ir à luta todos os dias. E pergunta a Oprah se no Dubai há sem-abrigos. E diz a residente no Dubai que não, que não há, porque o governo toma muito bem conta dos cidadãos. Não se paga conta de electricidade, há cuidados médicos de graça para toda a gente, todos têm direito a subsídio de desemprego, e portanto no Dubai não há sem abrigos. Não há pobres, portanto.
Esta Oprah devia, pura e simplesmente, ter vergonha naquela cara por permitir este tipo de propaganda obscena e indesculpável. Não estou a dirigir a minha raiva à pobre de espírito residente no Dubai - as pessoas acreditam no que querem, especialmente se escolhem que governos e políticos e a sua própria parvoíce pensem por elas. Agora, esta Oprah, auto-proclamada salvadora da pátria, sempre tão boazinha, sempre tão justiceirazinha, sempre tão humanitária que até promove programas excelsos como o Dr Phil, esta Oprah não investiga, não se dá ao trabalho, de pôr os olhos nesta situação que se passa no Dubai? Como é que é possível, por parte de quem se comporta como uma verdadeira heroína, defensora de pobres e oprimidos, porque ela própria fez parte deles?
Eu sei que o programa está já datado. Eu sei que o Dubai já foi à vida, afogado no tal credit crunch. Mas não muda o facto da heroína Oprah permitir propaganda mentirosa e chocante no programinha dela.
Aquilo que me interrogo é se o faz por indesculpável e medíocre ignorância ou por igualmente indesculpável indiferença. A resposta é tristemente arrepiante em ambos os casos.

terça-feira, 9 de março de 2010

Pinta


Da mesma forma que há coisas intrinsecamente más, também as há intrinsecamente boas. Como por exemplo, Marlon Brando, mais concretamente na cena da varanda no Eléctrico Chamado Desejo (doravante "Streetcar", que é como eu gosto de me referir a este filme, que sou pessoa de tu-cá-tu-lá).
Não me parece que alguém possa ficar indiferente a Brando (em novo), nem mesmo homens, embora compreenda que alguns sintam a necessidade de não o admitir. Nada tem a ver com preferências íntimas ou falta delas - tem a ver com o facto de algumas pessoas, homens ou mulheres, terem um magnetismo indelével, inegável, inultrapassável. Aquele tipo de pessoas à volta das quais os outros giram como pequenos satélites deslumbrados. Muitas vezes, estas pessoas nem sequer são muito bonitas, de feições perfeitas e imaculadas. Às vezes, até são feias. Mas, como diria o Nelo, personagem do grande Herman, acerca de si próprio, "têm muito poder".
E são estes, até, os casos mais interessantes e profundos de atracção - os feios com pinta.
Não era o caso de Brando, porém. Era deslumbrante com pinta. Teve sorte, nada a fazer.



Sinais exteriores de riqueza

Ena pá!
Este blogue tem 15 seguidores, o que é um número respeitabilíssimo. Porreiro.
Obrigada a todos.
Para comemorar, vou pôr uma aplicaçãozinha aqui ao lado, esperando que ninguém se importe.
Se não achasse uma piroseira, punha também um smile.
Bem-haja, sim?

segunda-feira, 8 de março de 2010

Está mal

Disseram-me assim: "não posso dizer mal da Sandra Bullock nem do filme, porque ainda não vi".
As pessoas estão sempre a usar este argumento - não dizer mal sem ver o filme, sem ler o livro, sem experimentar o vestido. Concordo que se deve deixar a maledicência para momentos vis e baixos que todos devemos evitar. Mas não concordo que não se possa formar uma opinião ainda antes do primeiro contacto.
Lamentavelmente, algumas coisas são intrinsicamente más e não precisamos de tentar gastar o nosso tempo com elas para perceber tal verdade. Eu não vi o filme com a Sandra Bullock nem quero ver, porque tenho 99% de certeza que vai ser mau. E, sinceramente, o 1% de margem de dúvida não me incomoda o suficiente para perder tempo a ver o filme.
Tal como nunca li nenhum livro de Nicholas Sparks nem vi nenhum filme baseado na obra do senhor e tenho 100% certeza de que não prestam. Não preciso de ver. Qualquer pessoa sabe.
Da mesma forma que algumas coisas, na vida e no mundo, estão certas e estão erradas, sem relativismos ou margens para dúvidas. Converso algumas vezes com um indivíduo meu conhecido a fazer doutoramento em Ética, que diz que é muito complicado decidir sobre a excisão feminina, porque "faz parte da cultura das pessoas". Pois. Mas há tradições e costumes errados que têm de se mudar. Mais uma vez, qualquer pessoa sabe.
Lembrei-me disto porque é Dia da Mulher. E há coisas intrinsicamente más. Não preciso de ver o filme ou experimentar o vestido para saber.

The Dude abides

De que gostei na noite passada, isto é, hoje, quando descobri os vencedores? Gostei deste homem a receber o Oscar:



Sim senhora. Não vi o filme, mas Jeff Bridges merece, com certeza, que ele é um fixe (inesquecível no Big Lebowski).
Para o resto, falta-me a pachorra. É tudo uma seca, como diria Jacintinho n'A Cidade e as Serras. Falta-me, principalmente, a paciência para a Sandra Bullock, que sempre achei um tanto ou quanto canastrona, e para a Mo'nique, que sempre que abre a boca parece que tem a lágrima ao canto do olho e tudo lhe treme ("thank you, Gaaaaawd!"). Um pouquinho mais de naturalidade.
Mas enfim.

Rita juntou-se ao grupo das Pessoas que Não Querem a Miley Cyrus nos Óscares


Os Óscares vão começar daqui a nada. Estou entretida a ver a passadeira vermelha, onde um ser aparentemente do sexo masculino entrevista esse outro ser que é a Miley Cyrus (reparar neste beicinho... eh pá... 16 anos e já usa botox? Mas que mundo este...).
Os Óscares são o que são, mas eu pensava que ainda tinham levemente a ver com o cinema. Já vi que não.
A Miley Cyrus?! A Miley Cyrus.
Vou passar o resto da noite a tentar perceber porque é que isto me irrita tanto.
A Miley Cyrus... mas ... ?
Ah, e espero que ganhem os Coen, que nitidamente estão entre os nomeados para dignificar o acervo de filmes deste ano, que é assim um bocadinho paupérrimo e óbvio.
A Miley Cyrus...?

domingo, 7 de março de 2010

Joan Collins e os autocarros que ela apanha


Na minha infância, havia uma mulher que me fascinava e que se chamava Alexis Carrington, má como as víboras e empenhada em destruir a vida do ex-marido magnata, que a tinha deixado para casar com uma loura deslavada de sorriso beatífico e claustral, que era a Linda Evans na vida real e que, também na vida real, namorou com aquele artista grego que dá vontade de rir, o Yanni.
A Alexis Carrington movia-se num mundo que eu nem sempre podia contemplar, porque a minha mãe não me deixava, e que era uma telenovela chamada Dinastia, protagonizada pela Joan Collins. Esta mulher suscitava-me espanto e admiração: aquelas unhas vermelhas e magníficas, a ostensiva maquilhagem, o cabelo escuro, muito ondulado e muito armado, a roupa faiscante, os ombros infindos devido a enchumaços épicos, enfim, uma maravilha. A Joan era um equilíbrio precário entre a aristocrata falida e a diva de bordel, a dona de casa abastada e a mulher perdida, o refinamento de maneiras e a descompostura da mulher traída, sem casa e sem marido. Magnífico.
Também ainda em pequena, li uma entrevista, uma vez, com a Joan. Dizia ela (era, até, a manchete da entrevista) que "os homens são como os autocarros: perde-se um, espera-se um bocadinho e chega outro" (presumo que os homens possam dizer o mesmo das mulheres).
Esta clarividência tem-me acompanhado na vida. Houve alturas de grande desânimo, em que me pus a pensar que, daquela vez, tinha definitivamente perdido o autocarro, que nunca mais viria outro, e que ficaria ali, à beira da estrada, sem destino, para o resto da vida. Mas a Joan estava certa. Chegou sempre outro autocarro e, mesmo que o bilhete fosse caro, valeu sempre a pena pagar. E esta forma sensata de ver a vida, é a Joan Collins que a ensina.

sexta-feira, 5 de março de 2010

Xanax


Descobri um admirável mundo novo.
Um mundo em que deito a cabeça na almofada e durmo. Durmo profundamente, o ritmo cardíaco a ronronar que nem gatinho bem aninhado, as pálpebras profundamente fechadinhas.
Um mundo em que não ando de nó no estômago, em que as pequenas contradições e mesquinhas amarguras do dia-a-dia não me incomodam, em que as pequenas questiúnculas não me parecem mais do que isso - apenas questiúnculas.
Um mundo em que sorrio, em que descanso, em que me sinto normal e a cabeça respira, aliviada.
Às drogas, eu digo sim.



Chuva


Hoje choveu tanto, tanto, tanto, que a chuva entrou pelos meus sapatos, olhos, vestidos, e inundou-me, e quase me afogou, e às tantas eu nem conseguia respirar, e então comecei a nadar.
Nadei, nadei, nadei, e à minha volta havia muita gente também a nadar, alguns até furiosamente, sempre acompanhados pelo martelar incessante, quase cruel, da chuva, as gotas na nossa cabeça, as gotas no nosso pescoço e arrepiavam, e tudo a nadar, até que perguntei a alguém, "mas estamos a nadar para onde?", e a pessoa respondeu, "não sei, mas não podemos parar, não é?", e eu perguntei, "porquê?", e a pessoa respondeu novamente, "porque se pararmos não vamos a lado nenhum. Se continuarmos a nadar, talvez cheguemos a qualquer lado, sei lá".
Eu nadei, nadei, nadei e a chuva nunca parou.
Agora já estou em casa e, lá fora, não se ouve barulho nenhum. A chuva silenciou tudo, e ela própria já se calou.

quinta-feira, 4 de março de 2010

Petals on a wet, black bough


Hoje aconteceu-me uma coisa tão estranha.
Estava a tomar café e a ler o jornal. É uma combinação que me agrada, café e jornal.
Bom. Acabei de ler o jornal, acabei o café (tenho o péssimo hábito de beber café a correr, a queimar-me a língua; a minha mãe, grande apreciadora e perita em matéria de café, diz que isso é sinal de quem é novato nestas andanças e não aprendeu, ainda, a equilibrar a curteza de uma bica com o tempo que é preciso para a apreciar verdadeiramente; ora, eu bebo café há mais de dez anos e a verdade é que, de facto, nunca consegui dominar bem esta técnica. Tenho medo que fique frio de repente e então bebo-o logo de enfiada, assim que tenho a chávena nas mãos). Adiante. Levantei-me para pagar e, à minha frente na caixa, estava uma rapariga (ou senhora - lá está, nunca sei), mas enfim, estava uma rapariga à minha frente que olha para mim e me dirige um sorriso imenso, aberto, e esboça um "olá". Como se me conhecesse.
A questão era: eu tinha uma vaga ideia de conhecer aquela cara. Vaguíssima, desvanecida, apagada quase à extinção, e não me conseguia lembrar de todo se a conhecia de facto, ou não.
A rapariga continuava a sorrir. Parecia tão contente por me ver. E eu fiquei especada, a tentar sorrir, mas de certeza a fazer cara de parva, e só pensava "se eu lhe perguntar 'mas eu conheço-a de algum lado?', vou ser muitíssimo mal-educada, não posso de todo dirigir-me a ela assim". De modo que decidi ficar ali a fazer figura de parva, de meio sorriso posto, até ela me deixar passar à frente e eu pagar a despesa.
Depois, agarrei no jornal, de cabeça baixa, a fingir que o estava a ler, para poder sair do café rapidamente sem ter de encarar novamente a rapariga. Que feio.
O sorriso dela era mesmo simpático. Parecia o sorriso de alguém que gosta de nós.
Mas será possível eu ter conhecido uma pessoa assim e não me conseguir lembrar?

quarta-feira, 3 de março de 2010

Afinal, não


Não, afinal não. Afinal não tenho nada medo dos burgueses que comem frango assado e vão ao supermercado no Seat Ibiza. Eu própria quero ter um Seat Ibiza.
Afinal, as famílias que vão aos centros comerciais já não me parecem amorfas, mas sim felizes e alegres, a comprar coisas. Eu também quero comprar coisas. Eu também quero ir ao centro comercial e ser, digamos, feliz e alegre, e ter um cão ou um gato, e ir almoçar com os sogros aos Domingos, e ir à esplanada depois do escritório beber uma cerveja no Verão, e conseguir pagar prestações para ir à República Dominicana, e fazer e congelar sopas, e mudar fraldas de bebés, e comprar DVDs com a Cinderella, e sentir convictamente que algo é "fofinho", e escolher a escola dos filhos, e ir falar com educadoras de infância, e comprar taparuéres, e comprar mercearias ao mês, e adiantar jantares e almoços, e deixar de ter tempo para ter um blog e para pensar em Sopranos, Dartacões, Brunos Aleixos, Montys Pythons, youtubes, a canção do George Michael dos anos 80 em que ele aparece a dançar de costas e é tão gira, deixar de ter tempo para tudo, começar a ir ao ginásio, querer ser magra todos os dias, preocupar-me em não engordar, ficar presa no trânsito, chegar a casa tarde e com trabalho, passar roupa a ferro, ter uma vivenda, ir para o trabalho de comboio, autocarro, metro.
Afinal, eu quero estas coisas todas. Não é estranho?

segunda-feira, 1 de março de 2010

Cinema lover

Eu não fui ver a Bela e o Paparazzo. Não fui ver porque não é uma prioridade minha. Faço questão de ir ao cinema ver filmes portugueses, mais - faço questão de ir ao cinema, ponto final. Adoro cinema, é uma arte que me seduz por completo e não consigo imaginar uma vida feliz sem aqueles momentos reconfortantes em que decido ir ver o filme x a uma sala de cinema. Nunca fiz, nem penso que farei, questão em investir nos chamados "home theatres" porque os filmes que me interessam verdadeiramente são para ser vistos nas salas.
Portanto, não fui ver a Bela e o Paparazzo porque não me interessa verdadeiramente. Interessa-me apenas medianamente, porque o cinema português me interessa, portanto terei todo o gosto em vê-lo em DVD ou quando passar na televisão.
De qualquer forma, o que me parece sempre lamentável, mas absolutamente lamentável, é que este género de filmes venha sempre acompanhado por discussões que rapidamente se tornam em questiúnculas pessoais e raramente contribuem para uma perspectiva verdadeiramente saudável e interessante sobre cinema e, em particular, sobre o futuro do cinema português, que é matéria que nos devia interessar a todos, a não ser que pertençamos àquele triste grupo de pessoas que só vê filmes que incluam legendas e onde se fala inglês. Eu gosto de pensar que não me incluo nesse grupo.
O crítico Vasco Cãmara, do Público, escreveu esta crítica ao filme e deu-lhe bola preta. Mais do que o texto em si, que até me parece válido, o que dói mesmo é a bola preta. Até percebo que António Pedro Vasconcelos esteja magoado - não se arranjaria, ao menos, uma estrelinha? É que assim, como diria John Cusack em Alta Fidelidade, "that's some cold shit".
António-Pedro Vasconcelos escreveu a Vasco Câmara aqui. Acha que os motivos de Vasco Câmara foram pessoais e que este crítico é movido por um ódio ressabiado (queridas pessoas que fazem o favor de ler este post, é melhor lerem os textos originais e não se deixarem influenciar pelas minhas paráfrases).
A conclusão que eu retiro daqui é que, pelos vistos, a crítica objectiva, saudável, inteligente, é algo de impossível em Portugal (não só a crítica de cinema, mas infelizmente também a de música e a literária). Os críticos são presos por ter cão e por não ter - se gostam, são subservientes, se não gostam é porque são pseudo-intelectualóides contra o mainstream. E porém, a maior parte dos críticos não consegue, de facto, atingir um nível de argumentação objectiva que interesse a alguém. Já se sabe que gostam de Godard e não gostam dos discos da Madonna.
Por outro lado, se a resposta aos críticos é a de que todos eles são movidos por questiúnculas, ódios ou amores pessoais, então assim não vamos a lado nenhum. Já não há pachorra para esta mania de país pequeno de tornar tudo pessoal porque toda a gente se conhece.
De guerras que se levam a peito, já eu estou farta.
Isto parte-me o coração, a sério que parte. Queria ver o cinema respeitado e, acima de tudo, queria ver o cinema português respeitado e levado a sério, independentemente de os filmes serem bons ou maus. Se são bons, que os louvemos condignamente; se são maus, que o afirmemos clara, objectiva e inteligentemente.
Esse dia, ao que parece, ainda vem longe.

Coisas que não compreendo

Há coisas neste mundo que a minha vã filosofia não alcança, talvez por ser vã, talvez porque o engenho e a arte não me têm ajudado.
Primeiramente, não compreendo o beicinho da Angelina Jolie. Quer dizer, um monumento lindo de morrer, com uma das combinações de que eu mais gosto (cabelo escuro e olhos claros), giríssima, e depois estraga tudo sempre com aquela boquinha irritante:


Porquê?! Não compreendo.
O meu conselho à Angelina é: como diz Castiglione, sobre o qual escrevi ali em baixo, um pouquinho de naturalidade é o que se pede. Veja lá isso, Angélica.

A segunda coisa que eu não compreendo, e que é ainda mais grave, é a Kelly Family. Eu não sei se a Kelly Family ainda existe. Aliás, eu não tenho sequer a certeza de a Kelly Family ter alguma vez existido. A minha opinião é a de que alguém pegou nas tartarugas ninja e as tornou mais antropomórficas, em versão alemã (a Kelly Family era, alegadamente, um grupo musical composto por uma família alemã, tios, irmãos, primos, cunhados, uma misturada, que vinha da Alemanha. Em Portugal, lembro-me de serem muito populares quando eu era adolescente, há muitos anos):




Estes Kelly Family, como se constata, tinham dois predicados: eram todos feios; eram todos assustadoramente parecidos uns com os outros. Pareciam os Habsburgo, o produto de incesto e reprodução plurigeracional sempre dentro da mesma família. Ou então, pareciam a versão mutante dos Habsburgo. Um susto.
As raparigas cantavam como os rapazes e os rapazes cantavam como as raparigas. Era uma coisa incompreensível. Banda que desafiasse tanto, e tão ostensivamente, as convenções de género, só talvez os Hanson, outro fenómeno musical que a História, e bem, escolheu não registar (pelo menos, espero que não):



Estes são os rapazes/raparigas dos Hanson.
É isto. Alguém que me explique a Kelly Family, se alguém ainda se lembrar deles. E, já agora, também os Hanson. Bandas familiares não é comigo, é a conclusão que retiro desta história toda.
Devo confessar que tinha saudades de um post maledicente, que me esvaziasse toda a bílis. É feio. E já está.
Para acabar em beleza, deixo aqui a Kelly Family em acção. Acho que o Wes Craven devia pôr os olhinhos na performance desta gente, é o que tenho a dizer.

Será talvez um lugar-comum, mas esta canção do Morrissey é suprema. E, para mim, condensa exemplarmente duas coisas que considero supremamente deprimentes: os Domingos e as cidadezinhas costeiras.
Há algo de muito estranho, quase fantasmagórico, nas terrinhas ao pé do mar. São bonitas, por um lado, mas têm sempre uma atmosfera de enterro que não consigo compreender. Alguém se esqueceu de as fechar ao público, como diz o Morrissey.
Quanto aos Domingos, penso que não preciso de me alongar relativamente ao potencial desanimador destes dias. Não conheço ninguém que goste de Domingos.

Esta canção é linda.


Morrissey - Everyday Is Like Sunday
Enviado por scootaway. - Veja mais vídeos de musica, em HD!

Cartas de chuva


Os dias de chuva trazem-me sempre as Birthday Letters, de Ted Hughes, juntamente com uma tristeza pingada e cinzenta. Quando procuro activamente por este livro, em livrarias ou dias de sol, nunca o encontro; quando o céu se torna pardacento e molhado, inesperadamente, aparecem-me sempre à frente os poemas que Hughes escreveu para a sua ex-mulher morta e suicida, Sylvia Plath.
Este sábado não foi excepção. A última vez que encontrara Birthday Letters fora numa velha feira do livro, coberto por um plástico roto, as páginas empoladas da chuva. Este sábado, num Chiado escuro e chuvoso, deparei-me com o outlet da Bertrand e, por entre os montes de livros que ali estavam, as Cartas de Aniversário, numa bonita capa azul escura (costumo gostar das capas da Relógio d'Água, e esta não foi excepção), vieram direitinhas a mim, edição bilingue e tudo.
Foi o destino. Tarde de chuva, península inteira a chorar, entro numa livraria fria, com um círio cintilante, e ali, sentado e imóvel, em frente ao altar dos meus olhos, a silhueta, o esboço, a esfinge, das Cartas de Aniversário.
Desta vez, comprei-o. Está na minha estante, junto dos livros a ler rapidamente, e vou começá-lo já hoje. Porque chove, porque ainda faz frio, porque Ted Hughes escreveu sobre a sua triste, condenada, pobre Sylvia suicida.

PS: não sou responsável pelo texto completo deste post. Sou responsável por 90%, mas o terceiro parágrafo é adaptado dos GNR, ainda hoje, grande círio da música portuguesa. Quer dizer, ainda hoje, não, porque o que fizeram a partir do InVivo não interessa, mas até ao InVivo, GNR rulam.