sábado, 31 de janeiro de 2009

10 razões para não se gostar de amor


Se me perguntarem se sou contra ou a favor do amor, eu digo que sou contra. Basta um relance à bela da fotografia aqui ao lado e penso que se percebe logo porque é que qualquer pessoa, em seu perfeito juízo, concordará comigo.

Em primeiro lugar, o amor torna as pessoas pirosas. Sorridentes e coradinhas, parecem que vêm da Aldeia da Roupa Branca. Ficam afogueadas, não podemos falar com elas, estoiram de felicidade. Não são produtivas. É mau para a sociedade.

Em segundo lugar, o amor deixa a pessoa muito mal disposta, aquelas dores de estômago que os ingleses descrevem como "borboletas", aqueles nervosos miudinhos, tudo muito esquisito, faz mal à saúde.

Em terceiro lugar, o amor dá azo às mais horríveis e insuportáveis canções pop, excepto todas as canções que os Beatles escreveram sobre amor.

Em quarto lugar, o amor dá azo às mais horríveis e insuportáveis comédias românticas com a Meg Ryan, exceptuando When Harry Met Sally.

Em quinto lugar, o amor dá azo aos mais horríveis e insuportáveis livros escritos por Nicholas Sparks, cujo nome, apenas, chega para a pessoa ficar mal disposta (nem precisa de amor).

Em sexto lugar, o amor dá lugar aos objectos mais inestéticos de sempre. De tão inestéticos, chegam a ser insultuosos - os ursinhos carinhosos, os coraçõezinhos vermelhos por todo o lado, postalinhos muito farfalhudos, de letra rocambolesca, tudo muito "-inho" e feio. Quem é que se lembrou disto?!

Em sétimo lugar, e como dizia Fernando Pessoa, o amor tem a grande capacidade de fazer as pessoas escrever coisas ridículas.

Em oitavo lugar, o amor tem igualmente a grande capacidade de fazer as pessoas dizer coisas ridículas.

Em nono lugar, o amor é piroso. Convém sempre reiterar.

Em décimo lugar, e concomitantemente, o amor é enganoso e matreiro, porque faz as pessoas muito felizes, convencendo-as de que o que estão a sentir é uma coisa boa. A melhor do universo, mesmo.

É triste que uma coisa tão nefasta como o amor tenha a capacidade de fazer tantas pessoas felizes. É uma tristeza, é.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

All together now

Já escrevi aqui antes como a androginia pode ser esteticamente tão interessante. Vim a descobrir que começa logo no faraó egípcio Akhenaton, ou seja, há muito tempo atrás.

Para mim, começou quando vi "Saltos Altos" e Miguel Bosé nesta cena de antologia, no vídeo abaixo, a cantar Luz Casal. A minha parte preferida é quando Bosé canta e os restantes travestis o imitam, com a coreografia sincronizada. É uma cena de antologia, quanto a mim, memorável. Gosto muito deste filme, como em geral tudo de Almodovar, e pensei nisto agora, porque o ipod no shuffle continua surpreendente e desta vez parou, precisamente, em Un Año de Amor, da dita Luz Casal.




O meu andrógino preferido continua, no entanto, a ser o magnífico Tim Curry no Rocky Horror Picture Show, o filme mais série B, mais pindérico e mais fascinante de sempre. Deixo também um videozinho para ilustrar, mas ver o filme é que tem graça. Se se tiver a oportunidade de o ver no cinema, ainda mais, porque é um verdadeiro rega-bofe - as pessoas levantam-se das cadeiras, dançam e cantam. Verdadeiramente maravilhoso. Aliás, tenho muita pena que não haja versões sing-a-long de nenhum filme em Portugal, ou em Lisboa (eu, pelo menos, nunca ouvi falar, só as conheço de Inglaterra). O que eu gostava, o que eu adorava poder ir ver um filme ao cinema, o Rocky Horror, a Música no Coração, o sumptuoso Yellow Submarine (vi-o na Cinemateca no passado fim de semana e tive de me conter para não cantar as músicas todas a plenos pulmões, estava tão contente!), e toda a gente a cantar, como no Fame, era tão bom... porque é que isso nunca acontece.
Entretanto, enquanto espero algum dia poder ir a uma sessão de cinema para cantar com os restantes espectadores, entretenho-me com a deslumbrante maquilhagem garrida de Tim Curry, mesmo impecável. Tivesse eu coragem de usar baton e sombra assim, eh eh.




Sweet Transvestite - Tim Curry

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Livros middleweight

Num filme de que gosto violentamente, Alta Fidelidade, John Cusack diz, a propósito de uma ex-namorada brilhantíssima e giríssima, não ser homem para ela por ser apenas "middleweight", isto é, "in between", isto é, nem carne nem peixe. Não é o homem mais bonito do mundo, mas também não é o mais feio; não é o homem mais esperto do mundo, mas também não é o mais burro, e por aí fora, de onde se conclui que, nas relações amorosas como no boxe, "you've got to punch your weight".

Bom, não querendo entrar por esta linha argumentativa, cito aqui Cusack nesse filme engraçadíssimo que é High Fidelity apenas para dizer que a problemática de se ser "middleweight" poderá não se aplicar necessariamente às pessoas, mas aplica-se seguramente, quanto a mim, aos livros. Há, de facto, livros que, não sendo grande literatura, também não são Paulo Coelho nem Nicholas Sparks nem restante lixo. Estão no meio. Reparo que há muita gente que acha estes livros "middleweight" encantadores, e confunde-os com literatura da boa. Não penso que sejam, e gostaria de ilustrar esta afirmação com um "case in point", o livro aqui da fotografiazinha, "The Curious Incident of the Dog in the Night-Time" (não sei se está traduzido para português; sei que em Inglaterra teve bastante "hype" quanto saiu, como, normalmente, estes livros middleweight têm). Narra a história de um menino autista, que vive com o pai, e que um dia sai de casa à procura da mãe. Tem partes particularmente bem conseguidas, quanto a mim, como por exemplo a cena em que o menino está numa estação de metro em Londres e é incapaz de sair de lá ou sequer de pensar como chegará ao seu destino. Mas, em geral, este livro não é um grande livro. Tem, sem dúvida, uma agenda que, além de absolutamente respeitável, é igualmente muitíssimo louvável, porque esclarece como é ser jovem e viver com o autismo (e as consequências para a família e amigos), mas a "agenda", por mais nobre que seja, não chega para fazer de um livro grande literatura. Não quer dizer que a grande literatura não tenha agenda - poderá ter, e pessoalmente até acho que deve ter; quero apenas dizer que a nobreza das intenções não chegam para tornar os livros em monumentos literários. Este "The Curious Incident" é simpático, não está mal escrito, mas também não acredito que mude fundamentalmente a vida de ninguém. É uma simpatia, apenas isso, sem personalidade ou carisma suficientemente fortes que o tornem memorável. Tal como, imagino eu, sejam muitos dos livros que por aí andam e que às vezes até dão filmes, como o "Kite Runner", por exemplo, que, mais uma vez, acredito que seja muitíssimo respeitável. Não li e não me parece que vá ler (e desde já peço desculpa se estou a ser injusta para com este livro -ele se calhar não merece), porque suspeito que seja mais um destes "middleweights", novamente rodeado de um grande "hype", que eu compreendo e até acho bem. É bom que as pessoas saibam destas realidades (o autismo, o Afeganistão, nos casos citados).

Eu e o meu pai discutimos este assunto algumas vezes por termos, aqui, opiniões algo distintas. O meu pai tem alguma (eufemismo - tem até mesmo muita) alergia a estes "middleweights", mas até os desculpa se neles vislumbrar um propósito social ou político que considere louvável. Eu, porém, não desculpo nada e não quero saber. Se a literatura puder ter, efectivamente, o tal propósito social e político louvável, melhor. Sou absolutamente a favor, e só me faz gostar ainda mais do livro/escritor. Mas, se não tiver, não afecta o valor literário da obra. É aqui que, modestamente, concordo com Harold Bloom (que, como é sabido, nem sequer dormiria se soubesse que eu não concordo com ele), quando, no Cânone Ocidental, sublinha que é o valor estético da obra que perdura e que a torna um monumento, inesquecível e resistindo ainda e sempre ao invasor, que é o passar do tempo. O progenitor, por seu lado, fica um bocado irritado com este "lado conservador" de Bloom, mas eu não.

Os livros middleweight (que eu leio e gosto de ler, não vem mal nenhum ao mundo por isso) favorecem, fundamentalmente, o leitor preguiçoso, e é por isso que não os vejo com grande simpatia. Favorecem aquele leitor inteligente, que se aborrece com Paulo Coelho, por exemplo, mas que não tem pachorra para se aventurar no Guerra e Paz (ou, vá lá, no Idiota ou no grande, incomensurável Crime e Castigo), e então fica-se por coisinhas assim, "The Curious Incident...", arrisca um Bret Easton Ellis, que é um middleweight mais puxado (eu gosto do Bret, por acaso gosto), umas coisas bonitinhas e comoventes tipo Kite Runner (mais uma vez, se estiver a ser injusta, mea culpa), um Paul Austerzito, umas coisas assim.

Se não se passar disto, é verdadeiramente uma pena, porque é muito importante conseguirmos um termo de comparação e perceber que os middleweights são muito aceitáveis, mas nada nos poderá dar tanta felicidade, como leitores e como seres humanos, como ler um verdadeiro e absoluto monumento, daqueles que encerram uma verdade essencialíssima sem a qual, a partir do momento em que a descobrimos, não vamos conseguir viver.

E é isto, acho que não tenho mais nada a dizer.

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Magníficas bizarrias da língua portuguesa, e: Uma Defesa do Uso de "Pá"

Há palavras na língua portuguesa que são um espanto (sinto-me na obrigação de avisar: este post é capaz de estar um tanto ou quanto chato...).

Estive hoje a ler sobre o século XVIII inglês, o chamado "Augustan period", e como se desenvolveu um enorme esforço de codificação do inglês e respectiva "elevação", isto é, dotar a língua de superioridade vocabular e gramática, o que normalmente correspondia, segundo uns, à maior clareza possível, e, segundo outros, à maior pompa e circunstância possível, produzindo-se, assim, textos bastante engraçados pois, nos dias de hoje, são de um inglês tão cerimonioso e floreado que se torna bizarro.

O que me fez lembrar que há palavras da língua portuguesa que também são assim, arrevesadas. Gosto tanto delas, por as considerar tão cómicas, que tento sempre utilizá-las na tese, para ver se consigo dar um toque, um apontamento, vá, de humor (subtil, espera-se) à coisa.

Assim, em vez de "sociedade contemporânea", escrevo "sociedade hodierna" (sem dúvida, uma das minhas preferidas).

Em vez de "o conceito de Humboldt é", recorro a "Humboldt hipostasia que" (!).

Em vez de "Jonathan Swift propõe", prefiro "Jonathan Swift preconiza/postula".

Em vez de "Lord Shaftesbury desejava", opto pelo infinitamente mais requintado "o desiderato de Lord Shaftesbury era" (este "desiderato", devo dizer, arrebata-me profundamente, com a sua imensa classe e "politesse" intrínsecas).

Digamos que, se tivéssemos de dividir o léxico da língua portuguesa em classes sociais, estes vocábulos que aqui referi seriam uma espécie de aristocracia. E por isso é que se tornam tão engraçados, são aves raras.

A par destas magníficas bizarrias lexicais da língua portuguesa, outra expressão que me agrada imensamente, mas que infelizmente não posso utilizar na tese para aguçar o humor, é o "pá" (também já escrevi sobre isto antes no Nascer do Sol). Devo dizer que me sinto na obrigação de escrever em defesa do "pá", que ouço algumas pessoas vilipendiar por ser informal, "popular", feio, "rufia", ou seja, relegam o "pá" para a ralé, para o esgoto. Eu, pessoalmente e em total oposição a estas opiniõezinhas, considero "pá" um grande exemplo de como dar comicidade, humor, versatilidade e expressividade às frases. Acho que "pá" pertence àquela classe média que tanto pode ter azar e tornar-se pobre como pode ter muita sorte e tornar-se rico, isto é, "pá" é aquele vocábulo que, estando em todo o lado e sendo pau para toda a obra, dá muito jeito e é muito expressivo, tanto para o rico, como para o pobre. É uma beleza linguística do nosso país muito menosprezada, o "pá".

Vejamos:

Sintacticamente, "pá" é muito versátil. Pode desempenhar funções de vocativo ("ó pá, tu põe-te a andar daqui para fora"); pode desempenhar funções de spot-filling, ocupando uma posição sintáctica que se destina apenas a encher frase, quando não sabemos o que havemos de dizer ("eh pá, tá bem, leva lá a bicicleta, pronto").

Pragmaticamente, isto é, ao nível do uso da língua propriamente dito, "pá" serve para tudo e mais alguma coisa. Serve para reforçar um pedido ("deixa lá, pá, deixa lá, ó pá, deixa lá"), serve como forma de tratamento (vide exemplo do vocativo acima), serve como interjeição, normalmente reforçada pelo igualmente muitíssimo português "ai" ("ai pá, o que tu foste fazer, ai, ai..."), serve para relevar laços de intimidade e carinho ("eh pá, dá cá um abraço, pá, tive tantas saudades tuas!").

Dependendo da nossa imaginação, podemos usar a partícula "pá" para dizer tudo quanto queremos. Só quem não tem imaginação é que acha que "pá" é feio. Eu acho que é bonito. É a minha opinião.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Sobre a "opinião"

Em geral, as pessoas com muitas opiniões fazem-me espécie. Incomodam-me. Quero mandá-las calar, embora os censores sociais a que normalmente chamamos "delicadeza" me impeçam. Não gosto de pessoas com muitas opiniões.

É estúpido ter opinião sobre tudo. É tanto mais estúpido quanto é perfeitamente certo ser impossível ter uma opinião sobre tudo, e não digo isto por vivermos numa sociedade de constante informação, Internet, aldeia global e quejandos lugares-comuns. O mundo foi sempre demasiado grande para nós, demasiado insondável, para que se possa ter uma opinião sobre tudo, desde o homem medieval até às mentes esclarecidas do século XXI.

E depois esta mania de se utilizar o espúrio, estéril, oco remate "é a minha opinião!" (ponto de exclamação e tudo, o que ainda irrita mais) para se justificar tudo quanto se diz, mesmo que seja (normalmente é) a maior barbárie deste mundo, sinceramente, dá cabo de mim. A opinião de alguém não é um argumento lógico e racional que justifique o que quer que seja, aliás, nem sequer é um argumento, é apenas uma posição pessoal, individual, e que vale o que vale (pouco, normalmente). Mas esta glorificação das opiniões é uma coisa perigosa. "Eu acho que Portugal devia ter pena de morte - é a minha opinião!", apenas para citar uma das frases que, infelizmente, mais ouço, belissimamente sustentada por uma qualquer (obviamente inexpugnável) opiniãozinha.

Uma vez, há anos e anos e anos, assisti a uma conferência de Fernando Savater na FLUL (e já escrevi sobre esta conferência no Nascer do Sol, do qual este blog é um spin off - digo isto porque não quero ser acusada, por mim mesma, de andar a repescar coisas). Ele disse uma coisa que nunca, mas nunca, esquecerei, por ter ido tanto ao encontro (perdão - "de encontro", como se diz na comunicação social) da minha própria opinião, lá está, eh eh (introduziria aqui um smile se não os achasse tão terrivelmente foleiros em posts). Bom, disse, então, Savaater qualquer coisa como isto: "As pessoas, hoje em dia, andam por aí a dizer que todas as opiniões são respeitáveis, o que é absurdo. Não. Todas as pessoas são respeitáveis independentemente da opinião que têm, mas nem todas as opiniões são respeitáveis".

Ouvi-o e pensei: "é isto. É isto, é isto. A partir de agora, posso respeitar toda a gente à vontade, mas não quer dizer que tenha de respeitar opiniões miseráveis".

E, de facto, este pequeno raciocínio de Savater tem sido crucial na minha vida, e tem até contribuído para aumentar a minha qualidade da mesma, porque assim irrito-me menos com as pessoas, ao lembrar-me de que toda a gente é respeitável.

O problema é que as pessoas que têm opinião sobre tudo insistem em martelar os ouvidos dos outros com os seus pontos de vista brilhantes, que eles acham que interessam assim ao mundo em geral. E, normalmente, o umbigo dessas pessoas é tão descomunalmente grande que elas se entretêm grandemente a olhar para ele, enquanto vão desfiando opiniões a quem as quiser ouvir, indiferentes à figura que fazem, ou, até, ao quanto a vida contraria as mesmas opiniões que insistem em ter. O que me faz lembrar uma frase muito sábia de um homem muito interessante, o imperador romano Marco Aurélio, que, esse sim, tinha opiniões daquelas que vale muitíssimo a pena ouvir. Diz, pois, Marco Aurélio nos seus "Pensamentos", manual precioso de instruções para a vida (negrito meu):

Nada acontece ao homem que ele não seja por sua natureza capaz de suportar. Sucedem a outros os mesmos acidentes e, ou porque ignoram que eles sucederam ou porque desejam mostrar-se fanfarrões, mantêm-se firmes e nada de mal lhes acontece. Estranha coisa, serem a ignorância e a presunção mais fortes que a sabedoria!

Eu acho que Marco Aurélio tinha toda a razão, e até acrescentaria, "estranha coisa, e mal feita, serem a ignorância e a presunção mais fortes do que a sabedoria." É a minha opinião.

Silêncio

Tenho de ver este filme:

"O Grande Silêncio" é o primeiro filme sobre a vida interior da Grande Chartreuse, casa-mãe da Ordem dos Cartuxos, uma meditação silenciosa sobre a vida monástica. Dezassete anos depois de ter pedido autorização para filmar no mosteiro, é dada autorização para entrar ao realizador, que filmará a vida interior dos monges cartuxos. Sem música à excepção dos cânticos do mosteiro, sem entrevistas, nem comentários, ou artifícios. Evocam-se unicamente a passagem do tempo, das estações, os elementos repetidos incessantemente durante o dia ou as orações. Um filme sobre a presença do absoluto e a vida de homens que dedicam a sua existência a Deus. O filme ganhou os Prémios de Melhor Documentário no Festival de Sundance e nos Prémios Europeus do Cinema. (CineCartaz - Público)

Perdi-o quando estreou, mas penso que foi lançado em DVD.
Tenho de o ver. Para fugir às opiniões. Um pouco de silêncio seria bom. Que me metam entre cobertores e não me façam mais nada. A menina dorme (ou pensa), sossegadita.



sábado, 24 de janeiro de 2009

As bruxas, eu creio nelas

Esta é a história (verdadeira) de uma Condessa que se banhava no sangue de jovens raparigas. (...) Nos tempos actuais não é possível ver o retrato, escurecido pela passagem dos séculos, que eternizou o olhar severo da muito bela Erzsébet Báthory. O castelo de Csejthe está em ruínas desde há duzentos anos, lá no alto dos esporões espetados dos Pequenos Cárpatos, perto da Eslováquia. Quanto a vampiros e fantasmas, esses, nunca deixaram de habitá-lo, bem como certo pote de barro, a um canto numa das caves, usado para verter o sangue sobre os ombros da Condessa.O fantasma do Monstro de Csejthe, a Condessa Sanguinária, uiva ainda lancinantemente durante a noite nessas salas cujas janelas e portas foram muradas e assim ficaram para todo o sempre.Que ela terá sido um Gilles de Rais no feminino, tudo o indica; até o próprio processo, do qual, por respeito ao seu nome, ilustre desde os primórdios da Hungria, e aos serviços prestados pela sua família aos Habsburgos, muita coisa foi suprimida. De resto, nem sequer se julgou conveniente interrogar a própria acusada(...)


Este livro ("A Condessa Sanguinária", Valentine Penrose, Assírio e Alvim, sobre Erzsebet Bathory, que matava jovens mulheres - isto é certo - para se banhar no seu sangue - aqui há dúvidas) é interessantíssimo. O seu interesse apresenta-se em duas fases (é "twofold", como acabei agora de escrever num texto "profissional", o que mais uma vez prova que quando a gente tem trabalho é que quer vir postar para o blog), dizia, o seu interesse apresenta-se em duas fases. A primeira é aquela que interessa a uma fã de filmes de terror e histórias de fantasmas como eu, uma vez que este livro tem, indubitavelmente, o elemento de "gore" e violência que, enfim, não sendo respeitável, atrai, e nada se pode fazer contra isso. A segunda fase, ainda mais interessante, é a reflexão que "A Condessa Sanguinária" conduz relativamente ao papel da mulher. Ao que parece, Erzsebet Bathory era efectivamente uma assassina sangrenta e empedernida; pelo que igualmente se pode constatar através de documentos históricos e fontes fidedignas, foi uma mulher da alta nobreza que, depois de ter enviuvado, geriu, administrou e manteve a larga herança e o desfiar de castelos que o valoroso e guerreiro marido lhe legara, absolutamente só e sem voltar a casar. O livro não procura glorificar Erzsebet - isso seria insultuoso e ridículo, tanto mais que os crimes da Condessa foram, durante anos, permitidos e ignorados por um robusto sistema feudal ao qual a morte de umas quantas camponeses era indiferente - até ao momento em que se começa, efectivamente, a matar demais, como foi o caso de Erzsebet, ou quando o poderio desta última começa a incomodar o rei, segundo teorias alternativas que consideram a Condessa inocente. Mas não consta que fosse lá muito inocente, esta pálida mulher que morreu emparedada num frio e escuro quarto, como castigo pelos crimes hediondos que cometeu.


Lembrei-me muito de La Sorcière, de Michelet, excelente, grande, interessantíssimo livro que nunca esqueci, apesar de o ter lido há anos:



Esta é a edição portuguesa, que recordo como fabulosa, publicada pela Afrodite, editora que publicava livros giríssimos - a par de La Sorcière, tinham também o Livro de S. Cipriano, por exemplo, mas com um prefácio à maneira, tudo bem contextualizado, além de, graficamente, terem o cuidado de produzir edições muito interessantes - encontrei, aliás, um blog, aqui, sobre as mesmas edições, de onde retirei a fotografia acima. Continuando, "A Condessa Sanguinária" fez-me lembrar La Sorcière porque, nesta última obra, Michelet explica como aquelas mulheres que iam parar à fogueira por bruxaria eram, na sua maioria, camponesas desprotegidas (sobre as quais recaía, por vezes, a inveja da mulher do senhor das terras) e, em segundo lugar, eram mulheres pobres a quem o estudo e o conhecimento académico era vedado, mas que não deixavam de ser profundamente inteligentes, o que as tornava atentas à natureza; sabiam fazer mezinhas, utilizar plantas medicinais, curar algumas maleitas, enfim, conseguiam conhecer o mundo autonomamente, passando a ocupar o papel de médico da aldeia e a ocupar também uma posição perigosamente poderosa e proeminente nas suas comunidades, rivalizando com a nobreza. É claro que Erzsebet não estaria nesta posição, uma vez que era uma aristocrata rica e latifundiária, mas há aqui um certo paralelismo - a bruxaria, o desvio dos costumes e da convenção (no caso de Erzsebet, este desvio é levado ao extremo e resulta na perversão e no crime), a marginalidade acabam por conferir uma certa liberdade a uma classe que, quer na sua variante depauperada, quer na sua versão opulenta, era, efectivamente, oprimida e/ou minimizada - as mulheres.

Gostei muito de ler "A Condessa Sanguinária", adorei o facto de me ter lembrado Michelet (nota para dizer que, na mesma esplanada onde me deram "Head and Shoulders", deram-me igualmente a Literatura e o Mal, de Bataille, que, para grande júbilo meu, tem um capítulo dedicado a Michelet, que ainda não li por não ter chegado lá, mas que hei-de ler); contudo, convém relevar, ressalvar e sublinhar que nunca por nunca poderei alguma vez admirar esta Bathory maluca que matava gente, nem o meu propósito neste post foi, de algum modo, apresentá-la como mulher emancipada avant la lettre. Convém que isto fique claro, porque para mim o terror só funciona nos filmes, mesmo. Mas reiterar que vale muito a pena ler este "Condessa Sanguinária" de Valentine Penrose, escritora que ainda por cima vem da escola do Surrealismo, acho eu, de modo que a sua escrita é estranha, quase poética e bizarra, predicados que funcionam bem, quanto a mim.

Sempre esta sensação de que estou a perder

A verdade é que as novas tecnologias me angustiam muitíssimo.
António Variações cantava, numa música que marcou e continua a marcar a minha vida, por ser tão verdadeira, "sempre esta sensação de que estou a perder". É isto que eu sinto sempre que um novo "gadget" (que porcaria de palavra) ou inovação técnica desponta no horizonte, para mais tarde chegar até bem perto de nós. Não estou a falar de descobertas ou avanços científicos, estou apenas a falar de tecnologia.
Angustia-me, é só isso. Sinto uma imensa simpatia por Jacinto de A Cidade e as Serras, e dou por mim a sonhar com a opção que ele tomou, deixar o palacete cheio de modernices e ir viver para o campo. Só que o campo, a aldeia, aquele lugarejo ideal onde todos se conhecem e são de uma bondade extrema, não existe. No campo, as pessoas também têm internet e medem a sua competência como seres humanos pelo número de amigos que têm no hi5 ou facebook, como em qualquer outro lado.
Eu, como não tenho amigos no Facebook, porque não tenho uma conta no Facebook (embora, se por acaso tivesse uma conta no Facebook, teria com certeza imensos amigos, teria o Facebook inteiro a querer ser meu amigo, como me parece muito óbvio), sinto-me sempre um bocado reacionária e antiquada quando as pessoas me falam destas inovações, da mesma forma que me senti absolutamente isolada do mundo quando comecei a ler e a ouvir a expressão "ipod" por todo o lado sem ter a mínima ideia do que era. Traumatizou-me, isto do ipod.
Apenas para dizer que as novas tecnologias me fazem lembrar "sempre esta sensação de que estou a perder". E agora sinto-me com se tivesse 60 anos.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Massacre das Teclas

(estou a escrever este post muito apressadamente, o tempo urge, se o português estiver mau é porque é à pressa, perdoem)
Hoje, o meu regresso a casa foi gótico e poético. Chuvia, o nevoeiro era denso e não se via um palmo em frente do nariz, como se costuma dizer, nem com os médios ligados, e não os máximos, porque nas aulas de condução disseram-me que, em situação de nevoeiro intenso, devem ligar-se os médios e não os máximos, pois os primeiros apontam para o chão e os segundos não, de modo que com os primeiros (os médios) vê-se melhor o chão em situação de nevoreiro cerrado, tal como aquela em que me encontrava (não parece que estou com pressa, mas estou).
Propositadamente, escolhi um atalho ao invés de tomar a estrada normal que me conduziria a casa, porque em dias de chuva gosto de meter campo adentro, a pensar que vivo no Romantismo. Este atalho é uma estreita estradinha, que atravessa umas vinhas, e depois continua monte acima, e onde ninguém vive. Estava chuva; o meu carro não se dá bem com chuva, empanou, começou a cheirar mal e a deitar fumo, eu dentro do carro assustada, era tarde, anoitecera, estava frio, e para aumentar o meu mal-estar, aparece um velho esbugalhado, de olhos muito pretos e sobrancelhas espessas, de cajado na mão, voz roufenha e agressiva, a perguntar se eu preciso de ajuda, e que era para eu sair do carro, para ele me ajudar. Eu disse que não, mas o carro cada vez deitava mais fumo, de modo que tive medo que aquilo explodisse comigo lá dentro, e achei melhor sair. Não vi mais nada senão um grande buraco negro, porque o horrível velho meteu-me dentro de um enorme saco, depois atirou-me para uma carrinha e acelerou em grande velocidade, enquanto, maldosa e velhacamente, se ria. Quando me tirou da carrinha e do saco, vi que me deixara numa sala lúgubre e escura de uma casa a cair de velha, onde apenas uma fraca, ténue e mortiça lâmpada pendurada no alto tecto espalhava alguma luz. Consegui ver que estava rodeada de pessoas que pareciam zombies, olhos inexpressivos, dentes pontiagudos, longos dedos esquálidos, e pensei de imediato que me iam devorar, pois estavam bastante magros, e ainda por cima eu dava para os alimentar, que chatice, mas porque é que eu deixei de ir ao ginásio, agora é o que dá... mas não. Os zombies aproximaram-se de mim até eu sentir um cheiro fétido a pairar e aquele que devia ser o chefe deles, sem grandes delongas, disse:
- Tu não sais daqui sem fazeres uma coisa que a gente te vai mandar fazer.
- É o quê?! Eu quero ir-me embora para casa! - gritei eu, entre o assustada e o muitíssimo indignada.
- Não. Só sais daqui viva se nos escreveres um blog.
- ?!?!?!?!?!?!?!?!?!?!?!
- Ah, pois, não faças essa cara. Nós temos um pc com ligação à internet, que um senhor nos veio cá montar (por acaso até foi este senhor idoso que fez o favor de te vir cá trazer), mas ele já tem trabalho suficiente connosco, não lhe podemos pedir que também nos escreva qualquer coisa, e nós não conseguimos escrever no teclado, os nossos dedos não têm força. Afinal, nós já estamos mortos, né.
- Então mas vocês são um grupo organizado, são um movimento, um sindicato, têm assim alguma mensagem, ou...para que é que querem ter um blog, afinal?
- Não pertencemos a nenhum grupo, nem temos mensagem nenhuma, nem sequer temos nada de especial para dizer ou para escrever. Mas não é precisamente por isso que as pessoas têm blogs?
- Aaaaaah.... pois, realmente, eu....pois, é verdade, é. Realmente tem razão.
- Então é isso. Nós só queremos uma pequena oportunidade para nos relacionarmos com os humanos. Não é pedir muito. Sabes mexer na Internet, não sabes? Também sabes escrever, não sabes?
- Sei. Quer dizer, pelo menos aprendi na escola, não sei se isso é "saber escrever", quer dizer, não sou nenhuma Florbela Espanca, se é nisso que está a pensar, olhe que eu...
- Ai, pronto, cala-te, já percebi! Aprendeste a escrever na escola, chega. Vá, agora escreve. A gente diz-te os tópicos, coisas assim da nossa vida passada, quando tínhamos uma vida no mundo lá fora, e tu finges que é sobre ti, adaptas, percebes? Consegues fazer isso, não consegues?
- Olhe, não sei! É difícil escrever para outra pessoa, e além disso o que me está a pedir é muito esquisito, e esta casa é esquisita, e eu quero ir para casa.
- Só vais depois de escrevers no blog. Se não escreveres, nunca mais te deixamos sair daqui. Começa a escrever.
- Olhe, eu nunca o tratei por tu, não o conheço de lado nenhum, o senhor por acaso conhece-me para me tratar por tu?
- Não sou "senhor", eu não te disse que já morri? Os zombies não são senhores nem senhoras, são só zombies. Escreve!
E de modo que é isto, tenho passado todos estes meses aqui fechada a escrever, a escrever, a escrever estes posts todos que tenho escrito desde Novembro, desde que comecei este blog, nem sei como consegui, só vejo teclado à frente, mas agora apanhei esta aberta, pois eles não estão aqui a ler o que escrevo, distraíram-se; amigos que estiverem a ler isto, venham salvar-me, salvem-me!, tenho mais ou menos uma ideia onde estou, a morada é...
Pam!
(barulho da martelada que levo na cabeça e que me deixa inconsciente; o martelo é de plástico; consequentemente, daqui a pouco vou acordar e voltar a escrever...)

F. Scott, já te tenho dito que não é bonito andar a invejar

Numa bonita esplanada parisiense, há 50 anos atrás, deram-me a ler "Head and Shoulders", um grande conto de F. Scott Fitzgerald que vale muito a pena ler e que se pode encontrar aqui.

Há muito mais a discutir no conto do que aquilo que vou aqui, apenas brevemente, mencionar, mas não deixa de ser interessante que "Head and Shoulders" verse sobre um pequeno génio, uma criança sobredotada, que cresce e acaba por casar com uma corista - ele, o génio, seria a cabeça daquela união, e ela, a corista que o sustenta, os ombros (que, precisamente, sustentam a cabeça). Acontece que, por reviravoltas do destino, é a corista que acaba por publicar um romance, elogiado pelo seu estilo vernáculo, à "Huckleberry Finn", próximo do povo, ao passo que o marido, o génio intelectual, é descrito como um trapezista inconsequente. Isto causa uma certa inveja ao marido.

Não pude deixar de me lembrar do próprio Fitzgerald, casado com a bela Zelda Fitzgerald (este nome arrebata-me), uma rapariga próxima das heroínas oitocentistas, branca como a neve, dissipadora, alcoólica, e convenientemente doida, de tal forma que F. Scott a encerrou num hospital psiquiátrico - acção que, aliás, lhe saiu do esforçado corpo e da ainda mais esforçada mente, que ele bem teve de escrever e vender histórias para pagar as contas do dito hospital. Consta que Zelda escrevia belíssimamente (nunca li nada dela). Consta também que F. Scott se terá sentido um tanto ou quanto invejoso, e que por isso a relação se deteriorou.

A inveja é a coisa mais azeda do mundo. Destrói as pessoas e, normalmente, brota sem qualquer espécie de justificação ou suporte racional, parece apenas nascer do nada, como uma erva daninha. Que razões teria Fitzgerald, um enorme, gigantesco escritor por direito próprio, para invejar a mulher? Por seu lado, que razões teria Zelda, que tudo indica ser igualmente uma inteligente e dotada escritora, para invejar Fitzgerald? A insegurança destes génios é aflitiva.
Pens'que (a la Cristiano Ronaldo) a inveja, por acaso, não é coisa que me aflija muito. Tenho, e posso até confirmar isto através de assinatura autenticada pelo notário se preciso for, uma lista absolutamente interminável de defeitos, é que tenho mesmo, admito, mea culpa, estou a tentar melhorar, mas felizmente a inveja não tem encontrado terreno fértil na minha pessoa. Ao menos isso.

Não era bem isto que eu queria dizer acerca de "Head and Shoulders", que adorei. Fitzgerald continua, definitivamente, a ser cada vez mais importante nas minhas leituras e na minha vida, e isto sim, queria escrever aqui, além de outras coisas muitíssimo inteligentes e interessantes relativamente a "Head and Shoulders", mas esta noite é ingrata, não vai dar.

Gajo com pintarola: Johnny Cash

Vou deixar o vídeo falar por si. Este concerto em Saint Quentin é o máximo! Merece ponto de exclamação e tudo.





Também deixo aqui uma das minhas absolutas favoritas de Johnny; não deixo o vídeo porque é imensamente foleiro, cheio de celebridadezinhas a quererem ser "fixes" e a fingir que cantam a música, para ver o seu nome associado postumamente a Johnny Cash. Deixo só a lindíssima, épica canção que reza "tell them that God's gonna cut them down" (a letra é de uma sonoridade, de uma imagética espantosa, acho eu - I've been down on bended knee, talking to the man from Galilee, he called my name and my heart stood still, for he said, John, go do my will).









Gods Gonna Cut You Down - Johnny Cash

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Hello Kitty vs Dartacão

Como claramente se ilustra aqui, a vontade de escrever no blog aumenta proporcionalmente ao trabalho que se tem, de modo que aqui estou eu hoje, furiosamente a escrever no meu blog dedicado ao ócio, quando deveria estar a escrever, sim, mas coisas daquelas importantes, daquelas de trabalho.

Mas não estou. E o que me traz aqui é uma coisa importantíssima, verdadeiramente fundamental, que se prende com algo que me irrita muitíssimo e que a minha pobre cabeça não compreende, que é:



Mas o que é isto?! Mas o que é que se passa com as pessoas (não apenas miúdas, peço desculpa. Mulheres crescidas, também, é vê-las nem que seja com uma carteirinha foleira, um bloquinho de notas horroroso, uns penduricalhos com a Hello Kitty, bllllleaaaagh), dizia, o que se passa com as pessoas e esta gata?! Em primeiro lugar, o nome absurdo, Hello Kitty. Depois, faz-me espécie (expressão que adoro) que esta gata não seja um desenho animado, não seja uma BD, não seja um filme, não seja nada, apenas um desenho rudimentar de uma gata com um parvo lacinho que ostenta na "orelhinha". Além disso, não tem boca. Não tem. Como é que isto é possível? Pura e simplesmente, não pode falar, nem rir, nem sorrir apenas, nem chorar, nem transmitir valores de espécie alguma às criancinhas. Não sabemos se está bem disposta, se está mal disposta, não sabemos o que pensa do mundo e do que nele se passa, nem sabemos, sequer, se prefere carne ou peixe. Esta gata tem um problema, que é: tem graves barreiras ao nível da comunicação interpessoal. É a coisa mais asséptica e anódina que já vi.
Também não compreendo, aliás, porque é que as crianças gostam de uma gata que não faz nada e que não poderia nunca falar, mesmo que o quisesse fazer (o que eu duvido). Agora, se fosse o Dartacão, isso confesso que seria a primeira a andar por aí a ostentar a merchandising, porque adoro o Dartacão, e além disso o Dartacão fala, é um cão com nobreza, defende os valores da amizade, é muito formativo e saudável para crianças e também para adultos. Agora, esta gata... plamor de Deus. Qual é a piada? Será que é por ser "fofinha"? Eu bem sabia que tinha razão em opor-me veemente a tudo o que seja "fofinho", "queridinho" e em geral termine em "-inho", porque normalmente resulta nisto, em termos de aturar estas ofensas ao bom gosto, Hello Kitty e quejandos.
Em substituição de Hello Kitty (alguém que a atire escada abaixo nove vezes, se faz favor), o que proponho é isto:




Tenho tantas saudades do querido (não "queridinho", atenção) Dartacão, que fala, e luta contra os maus, e tem amigos, e defende "um por todos, todos por um", e faz coisas em geral, que até deixo aqui em baixo a música e tudo (o Dartacão também tem a sua própria música, outra coisa que a desgraçada da Hello Kitty não tem, além de não ter boca, safa, que impressão!). O Dartacão marcou indelevelmente a minha infância, com aquele genérico épico onde se lia "esta série, baseada no romance de Alexandre Dumas, " Os Três Mosqueteiros", pretende, através de suas divertidas personagens, ressalvar duas virtudes que nunca se devem olvidar: a Honra e a Amizade"! Assim é que é, ainda hoje me emociono com isto, se alguma vez a Hello Kitty diz estas coisas maravilhosas (pois é, não tem boca). Volta, Dartacão, volta, volta, ao menos em DVD.






DArtacao e os Tres Moscaoteiros -

I loooooove Serge


Depois de tanta conversa de café, o meu fidelíssimo ipod, que eu às vezes acho ter uma mente independente, foi parar ao Requiem pour un Con, de Gainsbourg. O que me fez lembrar este maravilhoso disco, "Monsieur Gainsbourg Revisited", que, em minha opinião, é: tão bom, tão bom, tão bom, tão bom, tão bom, tão bom, tão bom...

Já escrevi aqui sobre a versão de Jarvis Cocker (I just came to tell you that I'm going), e como a acho mais insensível do que a original, mas não deixa de ser uma versão belíssima, de que gosto imenso e que ouço muitas vezes; l'Hotel, por Michael Stipe, está excelente, assim como o dueto de Cat Power e Karen Elson em Je t'aime, moi non plus; assim como os The Kills, em I Call it Art; assim como Boomerang 2005, com a Feist; assim como Requiem for Anna, Portishead; assim como Those Little Things, Carla Bruni; assim como o álbum inteiro.

Ouço este álbum e, embora sabendo que o que vou dizer é estúpido, tenho imensa pena de não fumar. Tenho uma querida, grande amiga que, quando fumava (agora já não fuma, tornou-se saudável, mas não graças a mim), e quando falávamos de Gainsbourg, dizia, a expirar o fumo do cigarro, toda femme fatal, "I looooooove Serge". É nestas situações, quando falamos de Gainsbourg e isso, que um cigarro dá um imenso jeito. Como também já disse antes, sou tísica, não posso fumar, que chatice (oh, nunca serei cool. Chuif, chuif).


Conversas de café - II

- O meu filho entrou para a faculdade este ano, olhe, e foi um problema, porque, como é que ele ia para a faculdade? É que ele só tem 17 anos, não pode tirar a carta, andava todo triste, porque os amigos iam de carro, ele tinha de andar à boleia, olhe, coitado do miúdo.

- Ah, e como é que fez?
- Até foi fácil, decidimos comprar-lhe aqueles carros pequeninos, eléctricos, daqueles dos reformados, sabe? É que para esses não é preciso carta e ele pode andar com o carro até fazer 18 anos. E até foi bom para nós, porque parece que esses carros valorizam imenso, de modo que olhe, comprei-lhe um carrinho assim e pronto, agora ele já tem maneira de ir para a universidade.

- Pois é, resolveu-se o problema.

Que giro, quando ouvi esta conversa percebi que há pessoas que não sabem para que servem autocarros. Devem olhar para eles e pensar "ah, lá vão aqueles veículos grandes, com tanta gente lá dentro, aquilo será para quê? Será que vão levar imigrantes até à fronteira com Espanha e deixá-los lá? Deve ser isso, deve"

Conversa de café

- Olha a D. X! Há tanto tempo que não a via, tá tão gira!

(esforçando-se por exarcebar a falsa modéstia, mas não enganando ninguém relativamente ao contentamento que o elogio lhe provocou) - Tou gira? Ai, não percebo como, o cabelo a precisar de ser arranjado, todo despenteado, com o vento... mas já é a segunda pessoa que me diz que eu tou gira, não sei com'isso é... (sorrisinho disfarçado)

- Pois. Também não vinha cá há tanto tempo, se calhar é isso...

- É, mas eu gosto de cá vir, vir cá ver vocês.

- Pois.

- Tive uma manhã tão complicada, ai.

- Ah...

- Então, convida-me uma colega para ir com ela ali à Junta de Freguesia, qu'ela tinha qu'ir tratar dum cartão pá filha. E eu disse, vamos lá, então. Chegamos cá abaixo, vai ela, vê que são horas de almoço, mete-se no carro e diz-me assim, ó X, olha, eu agora não te posso ir levar lá acima!

- Ah, teve de ficar cá em baixo... olha...

- Pois é, fiquei cá em baixo! Mas isto tem algum senso? É que eu acho que não, não tem senso! Para mim não tem senso, né.

-Pois. Oh, também deixe tar, fique aí a almoçar.

- Tá bem, mas agora tenho de ir a pé lá p'ra cima, vou chegar atrasada e tudo...
A D. foi traída pela amiga. Está mal. As pessoas não têm sensibilidade nenhuma. Mas, pelo menos, a D. X ficou a saber que os senhores do café acham que ela é gira, o que talvez compense ter ficado apeada porque a amiga se pirou de carro.

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Songs for Drella



Estou hoje a escrever não para me pronunciar sobre Obama e respectiva tomada de posse, mas antes para me pronunciar sobre este Songs for Drella, um dos meus álbums preferidos. Interessei-me por ele numa altura em que gostava mesmo muito de Andy Warhol, e sendo Songs for Drella (mistura de Dracula e Cinderella, alcunha de Warhol) uma "ficção" musicada sobre a vida do senhor pelos grandes Velvet Lou Reed e John Cale, ouvi-o do princípio ao fim. Agora, que o meu interesse por Warhol é já mais limitado, gosto deste álbum apenas e só pela música que, diga-se de passagem, não é exactamente uma "ficção" - desde o nome dos gatos de Warhol, até ter levado com um tiro da Valerie Solanis, passando pelas maleitas de que era acometido e onde vivia em Nova Iorque, está aqui tudo.

Há verdadeiras pérolas, neste álbum. A mais preciosa é, para mim, Open House, uma canção linda sobre a solidão (um privilégio e um tormento, ao mesmo tempo). Está disponível no Youtube, quem não conhecer e quiser conhecer pode ir procurar.


A segunda é este Small Town, vídeo infra, que narra a infância mediana do pequeno Warhol em Pittsburgh. Tem um verso de que sempre gostei - "When you're growing up in a small town, you say no one famous ever came from here. There's no Michelangelo living in Pittsburgh". Isto era, mais ou menos, o que eu pensava acerca de Portugal quando era pequena - "porque é que todas as pessoas conhecidas nunca são portuguesas?". Se calhar foi isso, inclusivamente, que me traumatizou, ser de um país relativamente ao qual o resto do mundo parecia ser indiferente. E ainda é, pelos vistos, com grande pena minha.

A canção é muito engraçada, tem também referências a Truman Capote (outro que veio da parvónia e se tornou "famoso", e que Warhol admirava), e algumas observações sensatas, como por exemplo "if they stare, let them stare at New York City", coisa com a qual eu concordo. No fundo, Small Town é uma reflexão sobre a fama, sobre querer que o mundo repare na nossa genialidade (o que, aliás, Obama deve perceber bem, para puxar um bocadinho o assunto do dia - a grande operação de marketing que montou e que o aproximou de uma rock star, com aquele Yes We Can, musicado por uma data de celebridades, não será inocente). O John Lennon disse, numa entrevista, ter sentido algo semelhante quando era pequeno. Ele sabia que era um génio enquanto criança; porque que é mais ninguém reparava? Felizmente, e no caso de John Lennon, as pessoas perceberam a tempo.
Há outras canções muito boas (gosto muito do Style It Takes, por exemplo), verdadeiras reflexões sobre a mistura entra a vida e a arte , mas estas duas são preciosas.

E é isto, hoje não tenho grande coisa a dizer, nem a escrever e nem a pensar. As terças-feiras matam-me.



segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

All you need is love...


... num cinema perto de si.

Personagens literárias mais cool de sempre - II

And the Oscar goes to:

James Kaatz (aka Jay Gatsby), directed by F. Scott Fitzgerald in The Great Gatsby

For his brilliant rendering of a man torn between a shallow life of parties and public acknowledgement and a hidden, secret love which ultimately leads to his destruction and shatters his identity; for being mysterious, loyal, dedicated and ultimately a "poor son of a bitch", the Academy is proud to present the nominee for Best Male Character in a Leading Role: Jay Gatsby








Medea, directed by Euripides in Medea

For her strength and defiance of common moral values, for her resillience in a men's world, for her constant pursue of revenge and standing up against her despicable husban Jason, for giving a whole new meaning to the "women's lib" movement, the Academy is prepared to look beyond Medea's murder of her children and proud to present the nominee for Best Female Character in a Leading Role: Medea




Edmund, directed by William Shakespeare in King Lear

For his brilliant rendition of a ravishing looking man who stops at nothing, for whom the world is his oyster, who defies his social position with daring impetus, the Academy is proud to present the nominee for Best Male Character in a Supporting Role: Edmund (I grow, I prosper. Now gods, stand up for bastards!)


Bertha Manson, directed by Charlotte Bronte in Jane Eyre


For her unconditional love for a man who was ultimately too weak and too conventional to fully embrace her devotion, for her complete and utter madness, for being the eternal "foreign", the Academy is proud to present the nominee for Best Female Character in a Supporting Role: Bertha Manson






É só votar.

domingo, 18 de janeiro de 2009

Woke up this morning, got yourself a gun, got yourself a gun...


Tanta cobiça.
Tão pouco "tempo".

Tempestade no Chapitô



Três actores levam Tempestade à cena, num espectáculo físico e visual impressionante. Às vezes, chega quase ao splastick, pelo menos foi o que me pareceu, de tal forma a expressividade física dos actores (rosto, movimentos) é importante. A forma como os três tomam a seu cargo todas as personagens da Tempestade é fabulosa. Mais uma vez, é a imensa expressividade do espectáculo, e a sua impressionante simplicidade (luzes, um livro, um pano negro) que me ocorre.

Vale mesmo muito a pena. Grande encenação, grande trabalho de representação. O próprio Shakespeare gostaria deste espectáculo, acho eu. De facto, ver Shakespeare encenado é perceber verdadeiramente a razão pela qual este dramaturgo é grande (o maior) entre os grandes. A universalidade, a versatilidade, a beleza das peças são uma constatação, um sofisma inegável, e este espectáculo, visual, físico, é disso demonstração. Em Shakespeare, de facto, está tudo: o teatro, a ilusão, a vida (curiosamente, é em Tempest que Prospero declara o verdadeiro e belo we are such stuff as dreams are made on; and our little life is rounded with a sleep - estará ele a falar da vida, do teatro ou dos dois?).

sábado, 17 de janeiro de 2009

Exílio


Uma das coisas que me atraiu para Heart of Darkness foi saber, antes sequer de ter lido o livro, que Conrad era polaco e só aprendeu inglês aos 21 anos (!). Não percebendo bem o que leva uma pessoa a escrever numa língua que aprendeu relativamente tarde na vida (a relação que temos com a nossa língua materna, para mim, é das coisas mais pessoais que se podem ter), atirei-me de cabeça para Heart of Darkness, obra que me deslumbrou, de tal modo aquela linguagem pictórica, enérgica e forte de Conrad é poderosa. Para mim, a explicação para alguém escrever daquela forma numa língua que não é a sua explica-se apenas através de genialidade profunda, que com certeza Conrad tinha, e que responde um pouco à pergunta que sempre fiz, que é "Se Conrad conseguiu, porque que é que eu não consigo". Porque não és o Conrad, bebé.
Esta semana, assisti a uma conferência muito interessante na FLUL com Gillian Beer, que falava da memória, do exílio e do regresso, e num breve apontamente, Gillian disse que, da mesma forma que podemos emigrar para um local diferente, também podemos "emigrar" para uma língua diferente, e que é isso que Conrad faz. No fundo, Conrad não é apenas um exilado geográfico; é-o também linguisticamente. Achei esta ideia muitíssimo interessante.

Este exílio linguístico, isto é, a possibilidade de podermos escrever e falar bem numa determinada língua e preferi-la, até, à língua materna, não será apenas um exílio, mas igualmente uma liberdade. Estando, infelizmente, muito longe de ser escritora, tenho no entanto alguma experiência de ter de exprimir emocções, pensamentos, teorias e abstracções numa língua que não o português, mais precisamente o inglês, e, por vezes, constatei que a tarefa era bem mais facilitada nesta língua do que em português. Tenho muitos amigos que me repetem que seriam incapazes de escrever as suas teses na sua língua materna ao invés do inglês, por exemplo, porque a língua estrangeira obriga a mais disciplina de pensamento, mais concreção, menos dispersão - tudo o que dizemos em estrangeiro é mais científico, e tudo o que dizemos na nossa própria língua é mais emocional, vem do coração (Chomsky explica isto com a sua gramática generativa - a linguagem nasce connosco). Aquilo que dizemos na língua estrangeira parece mais lógico e racional porque a ligação afectiva com a língua é menor, e, pelo menos no meu caso, isto confirma-se não com exemplos intelectuais de teses, mas antes com o exemplo dos palavrões, que me soam mal em português (apesar de os utilizar de vez em quando; por exemplo, porra), ao passo que em inglês me soam bem, sendo que sou muito mais mal criada em inglês do que em português porque, precisamente, os expletivos em inglês não me parecem assim tão "fortes". Não parecem tão fortes pois, como diz Chomsly, a nossa faculdade da linguagem inata que justifica o "instinto natural" para a língua, e que é tão evidente na língua mãe, desaparece, ou é fortemente atenuado, na língua estrangeira, onde o mesmo instinto só se manifesta, se é que se manifesta de todo, após anos de aprendizagem, prática, fluência. O que também quer dizer, por exemplo, que certas coisas são mais fáceis de dizer em estrangeiro, porque o coração não as sente da mesma forma, e por isso sentimo-nos mais livres para dizer o que quisermos.
Daí a minha sempre renovada admiração por Conrad, esse perpétuo e magnífico exilado in more ways than one (o inglês tinha de vir aqui parar). Porém, parece-me que Conrad conseguiu uma coisa que eu sempre julguei impossível, e que foi, precisamente, vencer o exílio e apropriar-se do inglês como se fosse a sua língua mãe, com ou sem instinto natural que o auxiliasse, e escrever do coração, emocionalmente. Incrível.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Duas coisas insignificantes que me irritaram levemente

Dantes, conhecia algumas pessoas que se chamavam Maria João. Agora, só conheço pessoas chamadas apenas "Maria".

Ontem vi um bocado do programa da Oprah. Devo confessar que vi de propósito para me irritar, porque às vezes tenho estes instintos sado-maso. A Opra entrevistava a Tatum O'Neal, filha de Ryan O'Neal, que pode ser um actor respeitável, mas parece que, como pai, foi um desastre. Bom, estava então Tatum O'Neal a falar da sua toxicodependência e do seu sofrimento e como custa largar a droga e isto e aquilo, e a grande sentença da Oprah, que sabe sempre tudo e é a salvadora do mundo e ai de quem a contradiga, diz-lhe assim sem mais nem menos, "pois, aquilo por que tu passaste foi uma humilhação. Foi uma humilhação e foi uma decadência. Era o que estavas a precisar na altura, não era?" Perante este absurdo de que, quando as pessoas passam por situações de vida humilhantes ou decadentes, é porque "estão a precisar", a Tatum O'Neal olhou para a Oprah e respondeu, brilhantemente, "sim". A Tatum também não deve ser muito esperta, coitada.
Esta Oprah, como se diz em brasileiro, "tira-me do sério" com a mania que Deus a colocou na Terra para fazer sei lá o quê. Parece-me ser uma mulher com a mania que encerra em si a sabedoria divina, preocupada em mostrar ao mundo o quão boazinha é, graças ao poder imenso que a televisão lhe dá e que lhe permite a auto-glorificação constante. É um perigo.
Acho que a Oprah devia ler a Justine, do Marquês de Sade, para aprender de uma vez o que se ganha em ser-se muito boazinha, coitadinha.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

The time has come to talk of many things: of shoes and ships and whether pigs have wings (post parvo)


Como hoje está frio e chuva, ouvi em repeat Alice, de Tom Waits, cujo primeiro e bonito verso é it's dreamy weather, que eu acho que se aplica muito a dias de chuva. Adoro esta canção. Este álbum de Tom Waits, intitulado precisamente Alice, é a banda sonora que Waits fez para a peça de Bob Wilson, intitulada precisamente Alice, e baseada, como se adivinha, precisamente em Alice in Wonderland, de Lewis Carrol, que esteve precisamente no CCB em Lisboa, precisamente há uma data de anos. Não consegui bilhetes, ou melhor, não pedi à minha mãe a tempo que me arranjasse bilhetes, porque eu naquela altura vivia do dinheiro parental e não tinha dinheiro nem para mandar cantar um cego, e hoje continuo a não ter, a questão é que agora tenho de trabalhar para não ter dinheiro para mandar cantar o tal cego, seja lá onde for que ele se encontra.
A Alice (in Wonderland e Through the Looking Glass) é daqueles livros fundamentais de que toda a gente gosta, e ainda bem. Eu gosto muito, principalmente da parte com Tweedledee e Tweedledum, em Through the Looking Glass, onde John Lennon se inspirou para escrever o fabuloso I am the Walrus. Mas o que gosto particularmente neste capítulo é da discussão que a Alice trava com os esquisitos irmãos Tweedledee e Tweedledum a propósito do sonho do Red Kind, profundíssima discussão em que os irmãos relativizam a realidade - nada existe, ou como saber que as coisas existem? como saber se o que pensamos e fazemos é real e não apenas um sonho? podemos ser todos fragmentos do sonho de alguém e nem sequer sabemos - ao passo que Alice afirma que sim, que ela sabe que existe, recusando admitir que os irmãos podem ter razão (o diálogo segue abaixo, ligeiramente comentado por mim). No fundo, a Alice só tem a sua própria vontade e crença que lhe asseguram a existência. Ela acredita que é real, mas não consegue responder quando Tweedledee e Dum lhe perguntam como é que ela pode ter a certeza de que as suas lágrimas são reais. Muito à Schopenhauer. Alice sofre, solipsista, encerrada em si, sem saber se existe ou não, porém sabendo que tem vontade de existir.

E foi esta conclusão brilhante que retirei de um tão simples acto cometido num dia chuvoso, que foi ouvir Alice de Tom Waits, e que demonstra igualmente que, nos dias em que insistimos em escrever posts apesar de não termos nem uma única ideia de jeito nem nada para dizer, inventamos as parvoíces mais maribolantes para que saia qualquer coisa do teclado. Desculpe qualquer coisinha.

He's dreaming now,' said Tweedledee: `and what do you think he's dreaming about?'
Alice said `Nobody can guess that.'
`Why, about YOU!' Tweedledee exclaimed, clapping his hands triumphantly. `And if he left off dreaming about you, where do you suppose you'd be?'
`Where I am now, of course,' said Alice.
`Not you!' Tweedledee retorted contemptuously. `You'd be nowhere. Why, you're only a sort of thing in his dream!'
`If that there King was to wake,' added Tweedledum, `you'd go out -- bang! -- just like a candle!'
`I shouldn't!' Alice exclaimed indignantly. `Besides, if I'M only a sort of thing in his dream, what are YOU, I should like to know?'
`Ditto' said Tweedledum.
`Ditto, ditto' cried Tweedledee.
He shouted this so loud that Alice couldn't help saying, `Hush! You'll be waking him, I'm afraid, if you make so much noise.'
`Well, it's no use YOUR talking about waking him,' said Tweedledum, `when you're only one of the things in his dream. You know very well you're not real.'
(rio-me sempre com esta afirmação peremptória de Tweedledum, como se estivesse a dizer uma coisa muito normal, do estilo, "sabes muito bem que tens de ir à escola" ou algo semelhante).
`I AM real!' said Alice and began to cry.
`You won't make yourself a bit realler by crying,'
("a bit realler", outra pérola) Tweedledee remarked: `there's nothing to cry about.'
`If I wasn't real,' Alice said -- half-laughing though her tears, it all seemed so ridiculous -- `I shouldn't be able to cry.'
`I hope you don't suppose those are real tears?' Tweedledum interrupted in a tone of great contempt.
`I know they're talking nonsense,' Alice thought to herself: `and it's foolish to cry about it.' So she brushed away her tears, and went on as cheerfully as she could.
(aqui está, vontade indómita de existir; não há qualquer argumento racional e lógico para a existência, ou se há, Alice não o consegue encontrar. Descartes, dá cá um saltinho que tens de vir resolver isto).

Aproveito para dizer que a edição que tenho da Alice é muitíssimo boa, "The Annotated Alice", edição crítica de Martin Gardner, publicada pela Penguin, e com os lindíssimos desenhos originais de Tenniel. Vale muito a pena, para todos os fãs da querida Alice. A maravilha da Internet também me informou de que Tim Burton está a preparar a sua versão cinematográfica da obra de Lewis Carrol, o que me deixa em grande expectativa, uma vez que, fã de Burton que sou, não consigo lembrar-me de ninguém melhor para levar Alice ao silverscreen.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

(outra) Gaja que faz o meu estilo: PJ Harvey

Hoje estou imensamente musical, e por isso não me posso esquecer de falar aqui da grande PJ, que eu adoro, adoro, adoro.

É tão desavergonhada, esta mulher, mas no bom sentido. Quando a comecei a ouvir, a sensação que tinha é que ela dizia coisas que eu tinha vergonha de dizer, e por isso é que digo que ela é uma desavergonhada e que isto é um elogio.

A raiva, a frustração amorosa e existencial, o desconforto com coisas de nada, ou com coisas muito importantes, um universo meio surreal e onírico, umas coisas vindas da literatura (consigo lembrar-me, precisamente, de uma cançãozinha chamada Catherine, correcção, Wind - estas duas canções são do mesmo álbum, confundo - sobre o meu Wuthering Heights, mas toda à rock, não a coisa melosa da Kate Bush, que eu por acaso também gosto), letras como I can't believe life is so complex, when I just want to sit here and watch you undress (este verso faz-me sempre rir, acho imensa piada a isto) e um visual estranho, que consegue provar que ser feia, às vezes, é ser imensamente bonita. Da mesma forma que há homens feios bonitos, sobre os quais também já escrevi aqui, também há mulheres feias lindas, como é o caso da PJ, quanto a mim.

Continua, Polly Jean, que eu preciso de ti. E, olha, já agora, volta a namorar com o Nick Cave. Faziam um casalinho tão bonito, os dois.

Parabéns a você



Ai, ai, ai, já me ia esquecendo, parabéns, Xutos!
Hoje, o shuffle também passou por eles (Contentores, Casinha, Homem do Leme. A minha preferida continua, porém, Circo de Feras, chique a valer, como se diria n'Os Maias).
Quando era pequena, não gostava assim muito de Xutos. O meu irmão é que gostava, e uma vez obrigou-me a ouvir a sua recitação da letra de "Chuva Dissolvente", uma música que, à semelhança das músicas de Frutuoso França que fizeram a infância de Lobo Antunes e sobre as quais o mesmo escritor escreveu no Primeiro Livro de Crónicas, tem muita moral, segundo o meu irmão. Mais tarde, fomos a um grande concerto chamado Portugal ao Vivo, onde os Xutos tocaram, e foi inesquecível. É claro que para isto também contribuiu o facto de, em vez de bailarinas, terem arranjado umas strippers para abrilhantar o show e deixar toda a gente siderada, mas a música em si (sim, que os Xutos também a tocaram) foi uma animação.

Passei a gostar de Xutos. De facto, têm muita moral e estes 30 anos confirmam isso. Acho que é um bocado impossível não se gostar do Zé Pedro, do Tim, do Kalu, e do Cabeleira, que me metia medo quando eu era pequena porque tinha aquela cara enfiada que parecia o Lobo Mau, mas aposto que também é muito boa pessoa.

Bandas portuguesas que cantam em inglês e não fazem mais nada senão falar da internacionalização: primeiro, acordem e deixem de ser bimbos, que a internacionalização não vai acontecer, segundo, ponham os olhos nos Xutos, amiguinhos. Como diria o Dr Pangloss em Candide, de Voltaire, primeiro há que cuidar do nosso próprio jardim. Depois, vamos aos jardins dos outros, ok?

Pequenos, minúsculos, pormenores

É muito engraçado descobrirmos pormenores na música ou nos livros de que gostamos, e que nos fazem gostar ainda mais deles. Por exemplo, já escrevi antes de que uma das razões pelas quais gosto muito, muito, muito de Measure for Measure, de Shakespeare, é o facto de Claudio, condenado à morte, replicar à irmã com um simples "Death is a fearful thing", ao tomar conhecimento que Isabella, a sua irmã, tem hipótese de o salvar se se oferecer carnalmente ao governador da cidade.

Vinha hoje no carro com o ipod no shuffle (bem, os tempos modernos fazem-nos usar cada item lexical mais foleiro e anglófono que, para me redimir do que acabei de escrever, só umas 200 Ave-Marias e 500 Pai Nossos, aposto), dizia, vinha então com essa glória da tecnologia, que é o ipod, programada para o auge das suas capacidades cognitivas e reprodutoras, que é o shuffle de mil e tal canções (vivemos, sem dúvida, numa sociedade de excesso; um instrumento que pesa meia grama e que alberga mil e tal canções, como é que isto é possível?! como é possível conhecer-se mil e tal canções, e o que é certo é que conhecemos, e até mais), hoje estou a divagar, dizia, ipod no shuffle, e calha o mesmo ipod passar a versão de Where Did You Sleep Last Night dos Nirvana.

Gosto dos Nirvana. Quando lançaram o histórico Nevermind, estava eu em plena, pleníssima, adolescência, e, estimulada pelos gostos musicais de um irmão todo cool que passava a vida em guitarradas no quarto, comecei desde logo a ouvir Nirvana, e a discutir quem era melhor banda, se Nirvana, se Pearl Jam, talvez até Sound Garden (ná, ou Nirvana, ou Pearl Jam) e a concluir que, em geral, a cena de Seattle era, toda ela, muito boa (concluí eu e o meu irmão, do alto dos anos de adolescente, muitíssimo orgulhosos do nosso conhecimento musical). Gosto dos Nirvana porque me fazem lembrar uma altura em que a música era tudo na vida- havia que ter bandas favoritas e intocáveis, havia que saber letras de cor e decifrar o inglês, havia que discutir a qualidade musical deste e daquele, havia que decidir se o enorme sucesso dos Oasis se justicava ou não, eu, por exemplo, era mais adepta dos Blur, havia que descobrir um número infindável de bandas mais antigas e essenciais, os Led Zeppelin, os Deep Purple, os Jefferson Airplane, a Janis Joplin, a perfeição dos Beatles, havia que gostar de Doors e decidir se o Jim Morrison era ou não o Rei Lagarto, havia que ir a concertos ou ouvi-los em directo na Antena 3, havia que sentir aquela emoção genuína de ir a um concerto pela primeira vez e pensar que aquele é o momento mais importante, mais entusiasmante da nossa vida inteira, estamos mesmo na mesma sala que aquela banda importantíssima, eles vão mesmo tocar para mim, nada é melhor do que isto, comprar revistas de música, ler os pregões parvalhões do Blitz (ainda existem?) e decidir qual era o mais parvalhão, pensar no que é que os Faith no More queriam dizer com "well it's a dirty job but someone's gotta do it", ou o Lenny Kravitz com "are you gonna go my way", estavam tristes?, estavam bem dispostos?, aquilo era uma mensagem importante ou não?

Enfim. Todo um rol de coisas que se tornam insignificantes quando crescemos, ainda que continuemos a gostar muito de música e a ouvir muita música. Esta torna-se ócio, lazer, e não o centro do nosso universo, que passa a ser ocupado por outras coisas não necessariamente más (algumas até francamente boas, felizmente) - apenas outras coisas.

Isto para dizer que o meu ipod escolheu, aleatoriamente, Where Did You Sleep Last Night dos Nirvana, Unplugged, que eu absolutamente adoro. De todo o Unplugged, acho que a minha preferida é mesmo esta, apesar de não ser um original da banda. Entre outras coisas, gosto muito desta canção porque, para o fim, o Kurt Cobain está a cantar e solta um suspiro doloroso entre I shiveeeeeeeeeeer the whole... e night through (confirmar minuto 4:30 e seguintes no vídeo abaixo). É provavelmente um suspiro de cansaço da parte do Kurt, por ter desfeito o shiver num grito emocionado, mas o que é certo é que este suspiro, para mim, encerra a intensidade toda desta canção. Ouço-a do princípio em grande antecipação, ansiosa por chegar à parte do suspiro. Um pormenor, nada mais do que isso, mas tão importante.

Estou a sentir-me muito adolescente, hoje.

Uma pequena nota antes de terminar, quando comprei o ipod nunca pensei que fosse usar o shuffle. Pensei que era o tipo de pessoa que faria playlist atrás de playlist (oh pá, estes termos da modernidade matam-me, o shuffle, a playlist, meu Deus...), com muita personalidade, umas para ouvir de manhã, outras para ouvir à noite, outras para descontrair, outras para dar adrenalina, e que nunca recorreria ao shuffle, que isso era coisa anódina de quem não sabe o que quer ouvir. Mas a verdade é que, passado o entusiasmo das playlists, reconheço que o shuffle, de facto, dá um imenso jeito e satisfaz o nosso desejo, muitíssimo adolescente, não de requinte, mas antes de conhecer bem esta banda, e a outra, e a outra, e a outra...

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

You're living for nothing now, I hope you're keeping some kind of record

Este post serve dois propósitos.

Primeiro, dizer que gosto muito do filme aqui da fotografia, Sunset Boulevard, em português Crepúsculo dos Deuses (este título até está giro), que acho assombroso. A Norma Desmond, personagem do filme, interpretada por Gloria Swanson, também ela uma diva envelhecida e démodé na vida real, é uma velha actriz cujos dias de glória já passaram, só que ela ainda não sabe, e vive fechada em casa, nos seus delírios de outrora, convencida que o mundo ainda a adora e aguarda ansiosamente o seu próximo, e sempre adiado, e consequentemente inexistente, filme. A Norma Desmond vive, apenas e só, na sua cabeça, completamente alheada do mundo exterior, num castelo de ilusões que a sua imaginação,e a devoção do seu fiel mordomo, alimenta. E, por isso, fez-me lembrar esta frase de Famous Blue Raincoat, de Leonard Cohen, "I hear that you're building your little house deep in the desert, you're living for nothing now, la, la, la". É isto que a solitária e abandonada Norma Desmond faz - constrói a sua casa no deserto, em completo isolamento. Ela não é muito diferente de todas as pessoas solitárias, apenas leva a solidão ao extremo, a preparar-se para o seu eterno close-up, uma última vez, frente às câmaras de Cecil B. deMille. É um filme maravilhoso, este, com excertos de filmes mudos protagonizados pela própria Gloria Swanson nos tempos de celebridade. É também neste filme que esta última pronuncia aquele famoso ditado sobre o cinema moderno - "agora têm vozes; nós, naquela altura, não, só tínhamos a cara. Já não há caras no cinema, excepto talvez a de Garbo". Realmente, Garbo tinha uma grande cara. Garbosa e tudo (não resisti à piada seca, peço desculpa).

Também gosto muito de Leonard Cohen. Adoro-o, para ser mais precisa, e infelizmente, por estar, na altura, longe de Lisboa fisicamente, embora presente em espírito, perdi o seu concerto na urbe, e agora tenho de me habituar à ideia de que, com a idade do senhor, nunca o irei ver ao vivo. É tristíssimo. O que me leva ao segundo propósito deste post. A lindíssima canção Famous Blue Raincoat, para mim, pura e simplesmente, a canção perfeita, é sobre quê? Sempre pensei, e a cada audição vou confirmando a minha conjectura, que a história reza assim: o Leonard tinha um amigo que se meteu com a mulher dele (and you treated my woman to a flake of your life, and when she came back she was nobody's wife), e para seu descomunal azar, este grande amigo era Corto Maltese (well, I see you there with the rose in your teeth; one more thin gipsy thief - a mãe de Corto era uma cigana de Gibraltar; Corto é meio cigano, também); o amigo foi-se embora, porque é um solitário, um lobo das estepes, não lhe interessa estar com ninguém (you're living for nothing now, aí está), mas fez a esposa do Leonard feliz por uns tempos, porque, precisamente, era o Corto Maltese (thank you for the trouble you took from her eyes, etc), de tal forma que, ao pé dele, o próprio Leonard, poeta magnífico e perfeito, sente-se meio aburguesado; isto passa-se, e o Leonard percebe que ele nunca poderá fazer a sua mulher feliz, agora que ela conheceu o indomável Corto, e escreve ao amigo (a canção, como percebemos, é uma carta . sincerely, L. Cohen) a dizer-lhe que se vai divorciar (your enemy is sleeping and this woman is free) e que ele pode voltar à vontade (what can I tell you, my brother, my killer, I guess that I miss you, I guess I forgive you, I'm glad you stood in my way). O próprio Leonard tem muitas saudades do seu grande amigo Corto e perdoa-lhe o facto de se ter enrolado com a sua mulher Jane. Esta última, depois da partida de Corto, decidira permanecer com Leonard (I see Jane's awake, she sends her regards - ela ainda vive com Leonard à altura em que este escreve a carta), mas agora que o marido percebeu que o casamento não está a resultar, e com o regresso iminente de Corto, quem sabe?! Narrativa aberta.
Consegui tornar a canção perfeita que Famous Blue Raincoat é numa telenovela. Sou um monstro.
Aceitam-se outras interpretações.
Antes de terminar, queria só reiterar que Famous Blue Raincoat é a canção perfeita.

Famous Blue Raincoat

It's four in the morning, the end of December
I'm writing you now just to see if you're better
New York is cold, but I like where I'm living
There's music on Clinton Street all through the evening.

I hear that you're building your little house deep in the desert
You're living for nothing now, I hope you're keeping some kind of record.

Yes, and Jane came by with a lock of your hair
She said that you gave it to her
That night that you planned to go clear
Did you ever go clear?

Ah, the last time we saw you you looked so much older
Your famous blue raincoat was torn at the shoulder
You'd been to the station to meet every train
And you came home without Lili Marlene

And you treated my woman to a flake of your life
And when she came back she was nobody's wife.

Well I see you there with the rose in your teeth
One more thin gypsy thief
Well I see Jane's awake --

She sends her regards.
And what can I tell you my brother, my killer
What can I possibly say?
I guess that I miss you, I guess I forgive you
I'm glad you stood in my way.

If you ever come by here, for Jane or for me
Your enemy is sleeping, and his woman is free.

Yes, and thanks, for the trouble you took from her eyes
I thought it was there for good so I never tried.

And Jane came by with a lock of your hair
She said that you gave it to her
That night that you planned to go clear

Sincerely, L. Cohen

Saiba tudo o que sempre quis saber. Os Beatles respondem.

A este desafio, é impossível de resistir. Responder a algumas perguntinhas típicas daqueles testes de personalidade da Internet com letras de canções. À semelhança da Tia Sócrates, também escolhi os Beatles, muito obviamente, porque sempre achei que tudo o que há para saber está na música dos Beatles. É ouvi-los com atenção, pois. Qualquer pergunta, eles respondem, como aliás este desafio prova.

1. És homem ou mulher? Her Majesty
2. Descreve-te: I am the Walrus
3. O que as pessoas acham de ti? Lovely Rita (optimisticamente falando)
4. Como descreves o teu último relacionamento? A Hard Day's Night
5. Descreve o estado da tua actual relação: You never give me your money
6. Onde querias estar agora? Strawberry Fields (Forever)
7. O que pensas do amor? A Day in the Life
8. Como é a tua vida? Fool on the Hill
9. O que pedirias se pudesses ter um só desejo? Please please me
10. Escreve uma frase sábia: Tomorrow Never Knows

domingo, 11 de janeiro de 2009

Este post é um lugar comum (centros comerciais, consumismos e quejandos)

No espaço de poucos dias, tive a oportunidade de observar não uma, mas duas, criancinhas, que se queixavam aos respectivos pais de que estes nunca lhe compravam nada. Uma chorava, gritando, na caixa de supermercado, "mas tu há uma semana que não me compras nada!", ao que a mãe, empedernida, respondia "pois, temos pena". O outro, ligeiramente mais velho, e desta vez nas escadas rolantes de um centro comercial (foi onde me cruzei com ele), pedinchava "mas compra lá! porque é que não me compras, são só 25 euros. Ó mãe, são só 25 euros!".
Numa tentativa vã de evitar discursos conservadores e perfeitamente estéreis como "quando eu era pequena, ninguém ia tão longe quando pedinchava aos pais, embora pedinchássemos", às vezes imagino as décadas futuras como dominadas por hordas de pequenos monstrinhos desempregados, a clamar, qual Oliver Twist (mas com mais determinação e petulância, coisa que o pobre Oliverzinho não se podia dar ao luxo de ter), please, sir, can I have some more, sir, now sir!, em inglês e tudo, não porque tenham lido o Oliver Twist, mas antes porque agora toda a gente fala inglês logo na primária, portanto o que será daqui a 10 ou 20 anos. Mas isto são apenas fragmentos da minha imaginação, nada que, espero eu, seja minimamente realista.
Quando a peça Shopping and Fucking, de Mark Ravenhill, estreou no CCB, há uns quantos anos, o encenador português que a levou à cena dizia que Portugal, no início do século XXI, atravessava aquilo que o Reino Unido atravessara no fim dos anos 80 e também na década de 90, consumismo desenfreado consequência do liberalismo desenfreado thatcheriano, além de frágeis relações humanas, amoralidade, etc. Talvez sim, talvez não. Gostando muito de Sara Kane, essa sim, que escreve peças tão cruas que custam a ler, e que faz parte da mesma escola de Ravenhill, , o in yer face theatre, devo dizer que não gosto particularmente deste Shopping and Fucking. Já se sabe que as relações humanas são muito vazias e tal, não é de agora. Olha o Hamlet, que teve de aprender isso duramente, e que viveu há que séculos atrás. O Hamlet não teria um centro comercial para destilar frustrações, mas tinha uma caveira e tinha a Ofélia, vai dar quase ao mesmo, porque desde que se destilem frustrações para algum lado, é o que importa.
Bem. Já me esqueci do que queria dizer. Acho que era só mesmo mencionar que, apesar da minha queda para as compras, que a tenho e bem, agora com os saldos então (eu própria sou produto do thatcherismo, liberalismo, capitalismo, etc., tudo muito desenfreado) aquelas criancinhas, já tão cientes de que 25 euros, pelos visto, não é assim tanto, me fizeram um bocadinho de impressão.